Agronegócio usa o fogo para explorar, destruir e ameaçar, mostra dossiê

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Segunda edição do Dossiê Agro é Fogo aponta para práticas criminosas. (Imagem: Divulgação)

A segunda publicação da articulação Agro é Fogo aponta casos de violência do agronegócio contra os povos do campo a partir de incêndios, um dos recursos utilizados para o desmatamento; como forma de resistir, povos indígenas montam as próprias brigadas

Por Nanci Pittelkow

A articulação Agro é Fogo lançou na quarta-feira (24) seu segundo dossiê com análises e denúncias sobre uso criminoso do fogo pelas cadeias do agronegócio e da mineração. Além dos casos de violência, o movimento, que reúne organizações da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal, destaca em um dos capítulos o trabalho de povos indígenas para prevenção dos incêndios florestais no Tocantins.

A resistência das brigadas indígenas é tema da última edição do De Olho na Resistência, um programa semanal, em vídeo, deste observatório:

Um dos artigos do dossiê mostra que já houve mais de 8 mil focos de incêndio no Pantanal em 2021. O bioma ainda se recupera com dificuldade das queimadas do ano passado. De janeiro a outubro de 2020, o fogo atingiu cerca de 4,1 milhões de hectares, segundo o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso corresponde a 26% da área do bioma. Em relação a 2019, houve um aumento de quase três vezes da área queimada.

A articulação Agro é Fogo é composta por 35 organizações, entre elas movimentos sociais, como a Via Campesina, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e organizações de apoio aos povos do campo, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Comissão Brasileira de Justiça e Paz. Boa parte da verba é bancada pela Cese, formada por diversas organizações de igrejas cristãs — duas presbiterianas, uma batista, uma anglicana, uma luterana e uma católica, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

FOCOS DE INCÊNDIO NA AMAZÔNIA DISPARARAM EM 2021

O Instituto Centro de Vida (ICV) identificou que, entre 1º de julho e 17 de agosto de 2020, no Mato Grosso, os incêndios florestais começaram em cinco fazendas de gado. Laudos de perícias realizadas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional do Mato Grosso (Ciman-MT) apontaram que os incêndios registrados no Pantanal mato-grossense foram provocados por ação humana.

Na Amazônia, só no mês de agosto de 2021 foram contabilizados 28.060 focos de incêndio, muito acima da média de 18 mil contabilizados na década anterior à chegada de Bolsonaro ao poder. O presidente costuma dizer, à margem da ciência e dos fatos, que a Amazônia não pega fogo “porque é úmida”.

No Cerrado, o número acumulado entre janeiro e setembro foi de 51.505, a maior alta desde 2013, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Esta segunda fase do Dossiê Agro É Fogo é composta por seis artigos analíticos que tratam de temas como o impacto do acordo entre União Europeia e Mercosul, os incêndios no Pantanal, o (sub)desenvolvimento pela mineração, além de sete casos de conflitos nas comunidades envolvendo incêndios. O material enfatiza que os incêndios não são fatos isolados e sazonais, conforme demonstram os casos a seguir.

SEM DEMARCAÇÃO, POVO APURINÃ VÊ MATAS SE TRANSFORMAREM EM PASTO

Cacique Rosenildo Apurinã registrou a destruição. (Foto: Arquivo Pessoal)

No início da luta pela demarcação da Terra Indígena de Valparaíso do povo Apurinã, a área reivindicada era de 56 mil hectares. Diante das constantes invasões do território, os Apurinã renunciaram a parte do território tradicional, para evitar conflitos. Com a promessa de que a demarcação seria efetivada em 2003, passaram a reivindicar somente 27 mil hectares. Atualmente o processo de demarcação se encontra paralisado e, a cada ano que passa, o território é devastado por grileiros .“Os invasores de nosso território são madeireiros e fazendeiros”, conta Antônio José Apurinã, cacique geral da terra indígena.

Segundo o cacique, os ataques são organizados da seguinte forma: primeiro entra o madeireiro e derruba as madeiras de lei para vender. No ano seguinte, eles ateiam fogo na área derrubada e, no inverno, entra o fazendeiro que utiliza avião para semear o capim. O último passo é cercar e colocar o gado. “Todo ano tem derrubada com roubo de madeiras, queimadas e formação de pastos e fazendas”, enfatiza o líder Apurinã.

Em agosto de 2019, no intitulado “dia do fogo”, um grupo de seis fazendeiros fez uma grande queimada que chegou a se estender por uma área de 600 hectares à margem do Igarapé Retiro, destruindo vários pés de castanheiras centenárias, sustento de muitas famílias.

NA BAHIA, FOGO PODE TER ACELERADO TENTATIVA DE DESMATAMENTO

Em 2020, três dias antes da publicação de portarias que autorizavam a supressão de 958,33 hectares de vegetação nativa na Fazenda Piabas, em Piatã, na Chapada Diamantina, ocorreu um incêndio de grandes proporções iniciado em uma propriedade vizinha da fazenda, pertencente à empresa Trebeschi. De Olho nos Ruralistas já contou essa história sob o ponto de vista do conflito das águas: “Observatório dos Conflitos Ambientais surge da união de geraizeiros, indígenas e pesquisadores na Chapada Diamantina”.

A Trebeschi abrigou em sua propriedade os tratores e caminhões que foram usados pela Hayashi para o desmatamento após a autorização pelo Inema. O incêndio começou por volta das 11 horas e rapidamente ganhou grandes proporções.

A brigada local Altitude Ambiental, composta por moradores de Piatã, passou quase 18 horas seguidas combatendo o fogo, evitando que ele se alastrasse ainda mais. Na portaria concedida à Hayashi, uma das condicionantes expressava que a supressão de vegetação não poderia ser feita por meio de correntão ou fogo. Atualmente, a supressão está suspensa por uma liminar.

INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E CAMPONESES SOFREM COM FOGO NO MARANHÃO

A Terra Indígena (TI) Araribóia, no Maranhão, demarcada em 1982 e homologada em 1990, abriga indígenas dos povos Tenetehara/Guajajara e Awá-Guajá. Mesmo assim, enfrentam um processo de violência devido às constantes invasões. Em julho de 2007, os madeireiros invadiram a aldeia Lagoa Comprida, assassinaram Tomé Guajajara e atearam fogo na mata, provocando grande incêndio na região. Foi apenas o primeiro incêndio criminoso de grandes proporções na TI. Em 2017, outro grande incêndio queimou roças, afugentou as caças, impediu a coleta na mata e secou fontes de água.

“Daqui a alguns anos, se continuar assim, não tem mais floresta, para os nossos filhos conhecer o caititu, a cotia, os animais todos, as árvores, essa beleza toda”, lamentou o líder Frederico Guajajara. “Isso não é genocídio? Porque se a gente não tem isso, acabamos”. Em 2019, mais um grande incêndio na TI Araribóia colocou em risco aldeias Guajajara e o povo Awá.

Incêndios no Pantanal foram devastadores em 2020. (Foto: Mayke Toskano/Secom-MT):

Desde 2009 é recorrente a destruição da sociobiodiversidade pelo fogo do agronegócio, que avança das monoculturas de eucaliptos e pastagens de pecuária em direção às comunidades quilombolas Cocalinho e Guerreiro, em Parnarama, Tanque da Rodagem e São João. Em 2014, a CPT no Maranhão tornou públicas as ações criminosas da empresa Suzano Papel e Celulose S/A. O contrafogo usado pela empresa para se proteger dos incêndios muitas vezes avança sobre as plantações camponesas.

No contexto da pandemia, o agronegócio não entrou em quarentena. No ano passado ocorreram novos desmatamentos, seguidos de um incêndio provocado pela Fazenda Canabrava, arrendada desde 2019 pela empresa Suzano para plantação de soja. O fogo atingiu áreas de cultivo, matas, chapadas e florestas da comunidade.

Um dos casos mais violentos no Maranhão acontece em Timbiras. O grupo Maratá, exportadora de frutas de origem sergipana, ameaça comunidades tradicionais desde 2004, quando jagunços da empresa expulsaram famílias e queimaram suas casas. Em outubro de 2019, foi deflagrada uma ação da Polícia Civil, em parceria com a Polícia Militar, nos municípios de Coroatá e Timbiras.

Na Fazenda Vai com Deus, de propriedade do grupo Maratá, foram apreendidos diversos armamentos, como espingardas e muita munição. Quatro homens foram presos; três deles haviam participado da expulsão das famílias de Jaqueira, em agosto do mesmo ano. Em dezembro de 2020, pós a prisão do gerente da fazenda, quarenta famílias camponesas iniciaram a retomada do território.

PISTOLEIROS AMEAÇARAM ATEAR FOGO EM BARRACOS ONDE ESTAVAM CRIANÇAS

O Projeto de Desenvolvimento Sustentável Boa Esperança está localizado no norte do Mato Grosso, no município de Novo Mundo, em território amazônico. Cem famílias ali acampadas reivindicam desde 2005 uma parte da Fazenda Araúna, dentro da Gleba Nhandu, grilada há mais de vinte anos por Marcello Bassan. A área reivindicada pelas famílias tem aproximadamente 6,3 mil hectares. Desde 2015, o fogo tem sido usado como arma contra os ocupantes, quando um jagunço do grileiro ateou fogo em oitenta casas de madeira construídas pelas famílias.

Em 2016, doze pistoleiros chegaram atirando para o alto e jogaram gasolina nos barracos com crianças dentro, ameaçando atear fogo. As famílias saíram do acampamento com a roupa do corpo. O que ficou foi queimado. Em julho, as famílias denunciaram a existência de fogo perto da sede da fazenda, registrado em novos Boletins de Ocorrência. Elas conseguiram evitar que o fogo chegasse à comunidade, fazendo ronda permanente para controlar o avanço das chamas e criando aceiros para a proteção do território.

Depois dos grandes incêndios de 2020 no Pantanal, a população foi atingida por um fenômeno diferente. O vento começou a levantar um borrão preto enorme, que passou a se aproximar das comunidades. “Aí que a gente foi ver que não era fumaça”, conta dona Leonida Aires, moradora da comunidade tradicional pantaneira Barra de São Lourenço (MS). “Porque a gente achou: meu Deus, fogo de novo? Voltou a queimar? E não era, era só cinza, muita cinza e essa cinza veio com tanta força…”. As cinzas prejudicaram a saúde dos moradores e a qualidade da água na região.

O fogo que atingiu a comunidade nos anos de 2020 e 2021 veio de áreas próximas, como o Parque Nacional do Pantanal e das fazendas da região, identificadas pela Polícia Federal em inquérito que corre em sigilo.

CINQUENTA ETNIAS PARTICIPAM DE BRIGADAS DE INCÊNDIO

A primeira brigada indígena só composta por mulheres foi formada no Tocantins. (Foto: Funai)

Muitos povos indígenas manejam o fogo de forma tradicional, controlada, na agricultura. O fogo também é utilizado para caça, pesca e rituais religiosos, de modo que a natureza seja sempre respeitada. Assim, desde 2013 são criadas brigadas indígenas dentro do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), que faz parte da estrutura do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Em todo o país são pelo menos 45 brigadas indígenas em onze estados, reunindo 800 voluntários e representando cerca de 50 etnias. Os brigadistas indígenas unem o conhecimento tradicional sobre o manejo do fogo com técnicas para combate a grandes incêndios.

A última edição da De Olho na Resistência mostra como os brigadistas indígenas combinam saberes tradicionais e tecnologia para combater o fogo. Embora o incentivo oficial tenha diminuído drasticamente no governo Bolsonaro, a formação de brigadistas indígenas continua. Indígenas das etnias Macuxi, Wapichana e Taurepang participaram de um curso de formação de brigadistas organizado pelo PrevFogo, programa de combate ao fogo do Ibama.

Neste ano, com apoio da prefeitura de Tocantínia e da Fundação Nacional do Índio (Funai), foi criada a primeira brigada indígena feminina do Tocantins, com mulheres Akwe, ou Xerente, para atuar em 94 aldeias. Ao contrário dos brigadistas do Ibama, que recebem uma ajuda de custo para atuar durante seis meses, essas mulheres são voluntárias. Sem apoio oficial, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) criou no fim do ano passado o aplicativo Cô, que quer dizer água na língua do povo Timbira. Uma forma de se combater os incêndios utilizando a tecnologia.

Nanci Pittelkow é jornalista. |

Imagem principal (Divulgação): campanha Agro é Fogo é formada por 35 organizações

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