Relatório mostra incidência maior desse tipo de violência entre mulheres, com um agravante: 21,13% dos casos registrados entre 2011 e 2021 foram estupros; publicação faz, pela primeira vez, recorte de gênero e identidade sexual
Por Mariana Franco Ramos
Nem toda forma de agressão deixa marcas físicas. Embora a humilhação seja apenas a quinta violência mais sofrida por mulheres no campo (7,29%), ela tem um peso maior do que para os homens (3,29%). Os dados fazem parte do relatório anual “Conflitos no Campo Brasil 2021”, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) na última segunda-feira (18), e evidenciam uma referência não só machista, como racista.
Se nos homens quilombolas a humilhação representa 25% das violências sofridas, para as mulheres ela constitui 40%. Com um agravante: 21,13% das violências sofridas por elas de 2011 a 2021 foram estupros. “Há uma nítida sinalização de que a humilhação indica o agravante de ser negro e ser mulher nos conflitos no campo”, afirmam os pesquisadores.
De forma geral, ameaça de morte e intimidação representaram, respectivamente, 31,25% e 13,54% das violências sofridas por pessoas do sexo feminino, seguidas de prisão (9%) e criminalização (8%). Mortes em consequência de conflitos (5%) ocupam a sexta colocação e tentativa de assassinato (5%) aparece na sequência.
Uma das coautoras do estudo, Ana Mumbuca, de 32 anos, é quilombola do Jalapão, no Tocantins. O local fica em uma das principais fronteiras agrícolas do país, que avança sobre reservas e áreas de preservação.
— Vivemos o embate da violência estatal, seja ela pela criação de unidades de conservação ou incentivo a projetos de agronegócio dentro da área do Matopiba, e então a agressão passa a ser também de origem privada. A violência é cotidiana sobre nossos corpos e sobre nosso território-fêmea.
Ela se refere à região formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, onde o avanço dos monocultivos de soja e do eucalipto impacta as condições de vida de comunidades tradicionais.
PUBLICAÇÃO DETALHA CINCO CASOS DE LGBTFOBIA
O relatório traz ainda, pela primeira vez, informações quanto à orientação sexual e à identidade de gênero das vítimas. A CPT faz algumas ponderações devido à dificuldade de identificação das pessoas atingidas, com agravamento pela condição de violência, o que impede um detalhamento maior dos números e das situações.
Em 2021, cinco lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexo ou pessoas de outras identidades e denominações sofreram humilhação, prisão, assassinato, intimidação ou tortura no campo. Quatro vítimas foram identificadas como sem-terra e uma como indígena.
No dia 26 de agosto de 2021, no município de Crateús (CE), durante ocupação do território sagrado Cruzeiro Sagrado do Pajé Potyguara, na Terra Indígena (TI) Potyguara Lagoinha, um homem LGBTQIA+ foi detido enquanto acampava, junto a sua comunidade. Dentro da viatura policial, o jovem teve convulsões em decorrência da ação.
Na Gleba Bacajá, município de Anapu (PA), em 13 de fevereiro de 2021, dois homens homossexuais foram alvo de intimidação por um grileiro da região. Segundo o registro, os dois agressores foram até a casa das vítimas, proferindo ameaças, ostentando armas e incendiando a habitação, sob alegação de que a família deveria deixar a área por não ser proprietária do imóvel. No momento da intimidação, o filho de uma das vítimas estava no local.
Área de ocorrência de um massacre, em julho do ano passado, o Acampamento Tiago do Santos também registrou uma ocorrência de tortura promovida por forças policiais contra uma mulher sem-terra, lésbica, no dia 16 de fevereiro de 2021. A ação foi realizada por cinco policiais em Nova Mutum-Paraná, distrito de Porto Velho (RO). De acordo com o relato da vítima, os agentes a torturaram com a finalidade de obter informações sobre os líderes do acampamento. A violência foi acompanhada de insultos, ameaças e intimidação corporal e psíquica.
Sobrevivente do massacre de Pau D’Arco, Fernando dos Santos Araújo, homem gay e sem-terra, foi assassinado com um tiro no dia 26 de janeiro. O crime ocorreu na mesma área onde, quatro anos antes, dez trabalhadores rurais perderam a vida, em ação empreendida pelas polícias militar e civil do Pará, na Fazenda Santa Lúcia/Acampamento Nova Vida. Araújo era testemunha chave do massacre e sua morte continua, até hoje, sem respostas e sem responsabilização dos culpados.
QUILOMBOLAS SÃO 2º GRUPO MAIS IMPACTADO POR CONFLITOS
Conflitos relacionados a grilagem responderam por 162 dos 1.242 casos registrados em 2021, como este observatório já destacou: “Grileiros foram responsáveis por 13% dos conflitos por terra em 2021, diz relatório“. Fazendeiros e empresários em geral somam 42% (266 e 255, respectivamente), conforme a CPT. O poder público — federal, estadual e municipal — responde por 17% das ocorrências (214).
O documento de 269 páginas identifica ainda outros atores que, direta ou indiretamente, concorrem para a “predatória consolidação de um projeto de exploração e acumulação de riquezas alinhado aos interesses ruralistas”, caso de madeireiros (6%), garimpeiros (5%), mineradoras (4%), polícia (1%), pistoleiros (1%) e igreja (1%).
A pastoral contabilizou 1.768 conflitos no campo, considerando as disputas por terras, conflitos por água e trabalhistas. As categorias que mais sofreram com essas ações predatórias foram justamente indígenas (317 casos) e quilombolas (210 casos). Foram 35 assassinatos em 2021, um aumento de 75% em relação a 2019, quando 20 pessoas perderam a vida nesses conflitos.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Incra): Território Quilombola de Iúna, na Chapada Diamantina, na Bahia, onde seis pessoas foram assassinadas em 2017
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