Qual o futuro dos povos indígenas – entre eles, os do Mato Grosso do Sul – caso as leis dependessem apenas da caneta do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal? Sombrio. É que as decisões dele são as mais nocivas entre os 11 ministros do STF, a se julgar pelo seu histórico. Ainda que quatro ministros – com alguma condescendência – possam ser classificados como “sinal verde”, numa escala do verde ao vermelho, De Olho nos Ruralistas constatou que, na média, o Supremo acende um sinal amarelo para as etnias.

O observatório fez esse levantamento ouvindo especialistas em questão indígena e avaliando o histórico de cada ministro. Um dos critérios centrais para a avaliação é a adesão ou não deles à tese do Marco Temporal, uma interpretação que inviabilizaria demarcações. Dos adeptos dessa tese aos defensores dos estudos antropológicos, dos que concedem habeas corpus para assassinos de indígenas aos que extinguem as reintegrações de posses em áreas de conflitos, a Suprema Corte está bem dividida em temas que definem o futuro dos povos originários.

As principais discussões em aberto no Supremo Tribunal Federal são sobre o Marco Temporal. A interpretação mais recorrente dessa tese é a de que os indígenas, para terem o direito à demarcação, deveriam estar habitando a área ou ter solicitado a ocupação dela até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. O Marco Temporal não abarca, portanto, milhares de casos ocorridos durante a ditadura ou em períodos nos quais as etnias já haviam sido expulsas, sem direito à defesa.

O Mato Grosso do Sul tem centralidade nessa discussão. É que o plenário do Supremo deve discutir em 2019, em torno do Marco Temporal, o futuro da Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó. Por enquanto, o ministro Edson Fachin pediu vistas do processo. Em 2016, a 2ª Turma do STF suspendeu por 3 votos a 1, utilizando esse argumento, a demarcação da terra pleiteada pelos Guarani Kaiowá. O primeiro voto contrário veio do ministro Gilmar Mendes.

GILMAR E A PRAIA DE COPACABANA

Gilmar Mendes tem diversas decisões anti-indígenas. (Foto: Nelson Jr./TSE)

A tese do Marco Temporal foi usada pela primeira vez para a definição da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O plenário do Supremo acatou 19 salvaguardas que viabilizaram a demarcação do território, em 2009. A bancada ruralista e o governo Michel Temer, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), desejam que essas salvaguardas, principalmente o Marco Temporal, sejam estendidas para todos os casos.

Acostumado aos holofotes e a frases de efeito, Gilmar Mendes criou uma argumentação própria – e peculiar – para se opor aos direitos pela posse imemorial garantidos pela Constituição aos povos indígenas. Ela ficou conhecida como a “tese de Copacabana”.

Em outubro de 2014, ao discordar do relator Ricardo Lewandowski, favorável a manter a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, Mendes apelou para uma ironia. Ele disse que se a política de demarcação da Fundação Nacional do Índio (Funai) prosperar “podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena”.

Para o procurador Marco Antônio Delfino, do Ministério Público Federal em Dourados (MPF-MS), a adesão à “tese de Copacabana” mostra claramente o descaso do ministro em relação aos temas indígenas.

De qualquer modo, a tese de Gilmar Mendes parece ter ressoado no Supremo. Os ministros Cármen Lúcia e Celso de Mello acompanharam o colega, discordando de Lewandowski e suspendendo o processo que tramita na Justiça há mais de 15 anos.

Alexandre de Moraes: decisões contra os povos originários. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Implacável no discurso, Mendes também se destaca nas decisões. Para barrar a entrada do povo Guarani Kaiowá como litisconsorte (parte interessada) na ação da Funai sobre a Terra Indígena Guyraroká, o ministro resgatou leis do tempo da ditadura, como o Estatuto do Índio, de 1973, que considera o indígena incapaz.

O ministro também concedeu habeas corpus aos acusados, hoje condenados, pela morte do cacique Marcos Verón, morto aos 72 anos. Ele mesmo um fazendeiro, com terras em Diamantino (MT), Gilmar Mendes defende os interesses do agronegócio. Em 2009, ele não hesitou em suspender o decreto do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva que criava a Terra Indígena Arroio Korá, em Paranhos (MS), no sul do estado, a favor de recurso dos fazendeiros.

MORAES EMPERROU DEMARCAÇÕES

Com pouco tempo no STF, o ministro Alexandre de Moraes parece estar em sintonia com Mendes. Ele compõe, com o veterano ministro Marco Aurélio Mello, um trio particularmente hostil aos direitos dos povos originários. Em abril, ao despachar sobre a demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, Moraes mandou a Funai refazer o parecer, levando em conta as teses definidas na TI Raposa Serra do Sol.

Quando ainda era ministro da Justiça, durante o governo Temer, Moraes não anunciou nenhuma medida em defesa dos povos indígenas. Pior: retirou poderes da Funai. Em janeiro de 2017 ele criou um Grupo Técnico Especializado que dividiu as decisões sobre os pareceres e as demarcações com dois outros órgãos do governo – as secretarias de Direitos Humanos e da Igualdade Racial – e um grupo jurídico do próprio Ministério da Justiça. A medida foi alvo de intensa crítica e o governo recuou parcialmente. Quatro dias depois, o governo publicou um decreto que manteve o grupo, mas diminuiu seus poderes, ao evitar, por exemplo, que eles deem pareceres a partir da jurisprudência.

Decisão sobre terra indígena em Roraima inspirou tese do Marco Temporal. (Foto: Reprodução)

O caso de Marco Aurélio Mello é mais ambíguo. Ele foi o único a votar contra a demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2009. “Os dados econômicos apresentados demonstram a importância da área para a economia do Estado, a relevância da presença dos fazendeiros na região”, disse em seu voto. E o Marco Temporal foi defendido pelo ministro: “Há de definir-se, ficando estreme de dúvidas, as terras realmente ocupadas – expressão da Constituição – pelos indígenas no já um tanto quanto longínquo ano de 1988, marco temporal para assentar-se a insubsistência de títulos de propriedade e posses de terceiros”.

Em 2017, ele foi relator das ações impetradas pelo governo do Mato Grosso que pediam indenização pela criação do Parque Nacional do Xingu e das Reservas Indígenas Nambikwára e Parecis. Nesse caso, o ministro relativizou a questão do Marco Temporal, ao admitir como fato notório “a ocorrência, no Mato Grosso, entre 1930 a 1966, de verdadeiro descalabro quanto à venda de terras públicas”.

Ele se referia à alienação a particulares, pelo estado, de “área superior à totalidade do próprio território, inclusive aquelas historicamente habitadas por indígenas”, como escreveu em seu voto. Naquela época, e até 1977, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul compunham o mesmo estado. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ele teve atitude semelhante no caso da Terra Indígena Morro dos Cavalos.

Soma-se a essas contradições o habeas corpus que Marco Aurélio concedeu para os acusados de sequestro e homicídio do agente de saúde Clodiodi de Souza, da etnia Guarani Kaiowá, em novembro de 2016, no caso que ficou conhecido como Massacre de Caarapó.

CÁRMEN LÚCIA RELATIVIZA, MAS…

Ao acompanharem o voto de Gilmar Mendes para o caso Guyraroká, Cármen Lúcia e Celso de Mello apontam para uma tendência pelo voto na tese do Marco Temporal. A ministra afirmou em seu voto que o reconhecimento apenas pela posse imemorial instauraria “um grave caso de insegurança jurídica a desestabilizar a harmonia que hoje gozam cidadãos até mesmo em centros urbanos que, em tempos remotos, foram ocupados por comunidades indígenas”. Cármen Lúcia, no entanto, não descarta a necessidade da discussão sobre o esbulho (usurpação) que sofreram os indígenas.

Cármen Lúcia não tem posição clara sobre o Marco Temporal. (Foto: Nelson Jr/TSE)

Enquanto foi presidente do Supremo, Cármen Lúcia suspendeu pelo menos cinco reintegrações de posse em áreas ocupadas por indígenas no Mato Grosso do Sul, diminuindo um pouco a tensão no estado. Em agosto, ela autorizou a investigação contra a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul que retirou, a força e sem mandado judicial, um grupo Guarani Kaiowá de uma ocupação em Caarapó.

O ministro Celso de Mello também acompanhou Mendes, mas não considera que os mesmos critérios da Raposa Serra do Sol possam ser utilizados em qualquer ação. Em sua decisão negando mandado de segurança de um fazendeiro contra a Terra Indígena Piaçaguera, em Peruíbe (SP), ele destacou que nem tudo o que ocorreu na Raposa Serra do Sol pode ser usado em outros casos, individualizando a questão do marco temporal e outros critérios.

O presidente do STF, Dias Toffoli, também invocou a necessidade de discussão detalhada para negar mandado de segurança impetrado contra o processo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Em dezembro de 2017, no entanto, o ministro foi autor do voto que indicava, pela primeira vez, o uso do Marco Temporal para as terras quilombolas. Por 8 votos a 3, sua tese foi derrubada em plenário, evitando que a memória dos descendentes dos escravos fosse desconsiderada.

Luiz Fux é outro ministro que não tem uma posição clara sobre a questão. Por um lado, revogou a liberdade garantida por Marco Aurélio aos assassinos de Clodiodi; por outro, tem defendido, em parte, a tese do Marco Temporal numa direção contrária aos interesses indígenas. Foi para discutir a questão que Fux suspendeu o registro em cartório imobiliário da área demarcada como Terra Indígena Kayabi (MT). Para o ministro, uma análise preliminar do Marco Temporal encontra “amparo” no caso Raposa Serra do Sol.

PELOS DIREITOS DOS POVOS ORIGINÁRIOS

Barroso durante o julgamento da TI Raposa Serra do Sol. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Entre os que mais têm se alinhado a decisões favoráveis aos povos indígenas está o ministro Luís Roberto Barroso. Ao votar na ação contra o Mato Grosso, ele deixou clara sua posição: “Entendo que somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”.

A ministra Rosa Weber apoia o conceito de ocupação tradicional e a mobilidade desses grupos. “Sabemos que devido às próprias características culturais dos índios, não significa necessariamente estar sobre a terra”, afirmou, na mesma sessão. Em 2017, ela reverteu a suspensão da homologação da Terra Indígena Arroio Korá, em Paranhos, concedida por Gilmar Mendes em 2010 aos fazendeiros. Em sua decisão, a ministra disse que é “possível reconhecer presença indígena (e o direito dos índios sobre a terra) mesmo diante de esbulho renitente cometido por meio da transformação da área em fazendas produtivas”.

Hostilizado na terça-feira (04/12) durante um voo, Ricardo Lewandowski tem sido bem visto pelas lideranças indígenas. Quando presidente do STF, inaugurou o primeiro polo indígena de um Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Brasil, em Roraima. Sua posição é completamente contrária ao Marco Temporal. Ao julgar a questão da TI Morro dos Cavalos, o ministro considerou esse critério uma “prova diabólica“.

O ministro Edson Fachin também tem um histórico favorável à causa. Em 2017, ele negou pedido de suspensão da demarcação administrativa da Terra Indígena Pequizal do Naruvôtu, em Gaúcha do Norte (MT). Como na grande maioria dos processos, a demanda era por uma demarcação baseada nas salvaguardas da Raposa Serra do Sol.

Em fevereiro, ao discutir outra tentativa do governo do Mato Grosso e da Agropecuária Serra Negra de receberem indenização pela demarcação da Terra Indígena Parabubure, Fachin disse que a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a consagrar o direito dos índios à posse de suas terras, “disposição repetida em todos os textos constitucionais posteriores”.

Foto em destaque: Lula Marques