Esplanada da Morte (XI): Militar comanda secretaria que assiste a massacre de indígenas por Covid-19

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Robson Santos da Silva, o militar que comanda a Secretaria de Saúde Indígena. (Imagem: Reprodução)

Robson Santos da Silva, coronel da reserva sem experiência na área, comanda com autoritarismo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai); especialistas apontam desestruturação do órgão e planos ineficazes de enfrentamento à pandemia, que já atinge 146 etnias

Por Poliana Dallabrida

Um colega de Exército do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, o coronel Robson Santos da Silva é quem comanda a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão que testemunha — em meio a diversas acusações de omissão — a explosão de casos de Covid-19 entre as etnias. Já são 146 os povos atingidos no Brasil, com 24.246 indígenas infectados pelo novo coronavírus. Ao contrário do que aconteceu com os ministros da Saúde, Silva se mantém no cargo.

Durante sua gestão morreu o cacique Aritana Yawalapiti, no Xingu. Tombaram indígenas Terena e Guarani, no Mato Grosso do Sul. Faleceu Sibé Feliciano Lana, no Alto Rio Negro. Messias Kokama, no Amazonas. Entre tantos outros: foram 664 vidas perdidas, segundo levantamento do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, coordenado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

A doença levada por não indígenas às aldeias expôs o descaso com o atendimento à saúde da população indígena no Brasil. Em muitos casos, foi a própria Sesai que levou a Covid-19 às comunidades.

Santos da Silva é o décimo primeiro personagem da série Esplanada da Morte. Desde 28 de julho, De Olho nos Ruralistas conta qual foi o papel de cada ministério (entre outras instituições, como a Fundação Nacional do Índio e a própria Sesai) na expansão da Covid-19 no Brasil. Em todo o país, mais de 104 mil pessoas morreram devido à doença.

A Apib e seis partidos políticos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT) ajuizaram, no dia 30 de junho, uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) em que denunciam a “irresponsabilidade sanitária” do governo federal e a “possibilidade real de extermínio de etnias inteiras”. Entre os órgãos estatais acusados de omissão e falha na condução de políticas públicas específicas de enfrentamento à Covid-19 está a Sesai.

A porcentagem de indígenas mortos por Covid-19 (3,2%, caso o critério seja esse universo oficial de atendidos pela Sesai), segue uma proporção bem maior que a do restante da população brasileira: 3,1 milhões de casos (1,5%) para uma população de 210 milhões. Só que os números da Sesai sobre infectados e mortos é bem menor que os compilados pelas organizações indígenas; as mortes, por exemplo, não chegam à metade.

Na secretaria desde fevereiro, o coronel da reserva Robson Santos da Silva é um dos 2.897 militares do Exército, Marinha e Aeronáutica cedidos a órgãos da administração federal. O Ministério da Saúde possui hoje 23 membros das Forças Armadas em postos-chave, incluindo o chefe da pasta, o general Eduardo Pazuello, chefe de Silva na Sesai: “Esplanada da Morte (IX): Eduardo Pazuello, o ministro das 100 mil mortes, é o gestor da matança“.

GOVERNO BOLSONARO TENTOU ACABAR COM A SESAI

Servidores da Saúde atendem povo Korubo, no Amazonas. (Foto: Funai)

“Assumi aqui no dia 12 de fevereiro e temos trabalhado em um ritmo frenético”, disse Robson da Silva em março ao Amazônia Real. “Eu peguei aqui em uma situação muito ruim. Vocês têm acompanhado a situação da Sesai e, se eu disser que estava bom, não estava não, estava muito ruim”.

A secretaria foi criada pelo Ministério da Saúde em 2010 e é responsável pela garantia de atenção básica de saúde aos indígenas. O órgão coordena o Sistema de Atenção à Saúde Indígena (Siasi), um subsistema do Sistema Único de Saúde (SUS). O atendimento é dividido em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que atendem 760,3 mil indígenas em todo o país.

O enfraquecimento da política de saúde indígena foi intensificado quando Jair Bolsonaro assumiu, em janeiro de 2019. “Na virada do ano, não tínhamos certeza nem do próprio futuro da Sesai”, explica Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz e coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

A incerteza sobre o futuro da Sesai tem origem na tentativa de extinção da pasta e municipalização do atendimento de saúde aos indígenas proposto pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, personagem anterior desta série: “Esplanada da Morte (X): Mandetta esteve em ataque a terra demarcada que terminou com morte de indígena“.

Após manifestações contrárias, a proposta foi abandonada, mas a estrutura de atendimento da Sesai sofreu alterações. Cargos e departamentos foram extintos, assim como mecanismos de controle e participação social, como o Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI).

Em 2019, a Sesai executou — ou seja, efetivamente gastou — um total de R$ 1,48 bilhões. Em 2018, esse valor era de R$ 1,76 bilhões, cerca de R$ 280 milhões a menos, de acordo com o relatório “O Brasil com Baixa Imunidade”, publicado em abril. A pesquisa foi realizada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organização não governamental especializada na análise do orçamento público.

O orçamento da Sesai para 2020 é ainda menor: foi destinado R$ 1,38 bilhão à pasta. O Ministério da Saúde informou em nota que destinou R$ 70 milhões em ações específicas de proteção aos indígenas para enfrentamento da doença.

MILITAR NÃO TEM EXPERIÊNCIA EM SAÚDE INDÍGENA

Formado em Pedagogia pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Silva possui mestrado em Educação pela Universidade Federal do Amazonas e cinco especializações nas áreas de educação à distância e administração escolar. Atualmente, é doutorando do curso de Engenharia e Gestão do Conhecimento, na Universidade Federal de Santa Catarina.

Titular da Sesai, à direita, pode substituir Marcelo Xavier, da Funai, à esquerda. (Foto: Divulgação)

Desde que o presidente Jair Bolsonaro tomou posse, Silva já mudou de cargo quatro vezes. Em janeiro de 2019, se tornou assessor especial do então ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez. Dois messes depois, foi exonerado e passou a ocupar o cargo de Diretor de Formação Profissional e Inovação da Fundação Joaquim Nabuco. Em maio de 2019, Silva foi novamente exonerado e passou a ocupar cargos no Ministério da Saúde.

Na pasta, começou como chefe de gabinete do então ministro Luiz Henrique Mandetta. O ex-ministro e da Silva eram velhos conhecidos: quando Mandetta serviu ao Exército, no início dos anos 1990, Silva foi um dos seus instrutores. Depois, passou a ocupar a direção do Departamento de Determinantes Ambientais da Saúde Indígena da Sesai, em julho de 2019. Em fevereiro, Silvia Nobre Waiãpi, então secretária da Sesai, foi investigada por irregularidades em contratos de serviços de transportes e substituída por Silva.

Uma quinta mudança de cargo pode ocorrer logo, segundo apurou o jornal O Globo. Robson Santos da Silva é o nome preferido da ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, para assumir a Fundação Nacional do Índio (Funai). Marcelo Xavier, titular do órgão há um ano, vem sendo questionado pela letargia nas ações de prevenção ao novo coronavírus nos territórios indígenas.

Enquanto a Sesai é responsável pela atenção básica à saúde, a Funai tem entre suas responsabilidades garantir, por exemplo, a segurança alimentar nos territórios. Damares tem participado de diversos eventos de distribuição de cestas básicas destinadas à população indígena, disputando protagonismo com Xavier e reforçando o desejo de incorporar o órgão, hoje sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça.

SECRETARIA PEDE MONITORAMENTO DE REDES SOCIAIS

A preocupação com a imagem do governo e da Sesai em meio a pandemia está em destaque no texto do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas. Elaborado em março de 2020, o plano de 24 páginas lista uma série de atribuições e recomendações gerais aos DSEIs, secretarias municipais e estaduais de saúde.

O documento traça estratégias para três níveis de resposta à pandemia: alerta, perigo iminente e emergência em saúde pública. Em todos os cenários há a orientação de “monitorar eventos e rumores na imprensa, redes sociais e junto aos serviços de saúde, em articulação com o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde, relacionados à população indígena”.

Além da preocupação com a imprensa, especialistas criticam o plano inicial elaborado pela Sesai. Para Valéria Paye, assessora política da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), faltou planejamento do órgão:

— A Sesai e os distritos sanitários não se preparam para combater o novo coronavírus. O que a gente tem acompanhando é um processo burocrático: documento de orientação disso, documento de orientação daquilo e planos genéricos iguais para todas as regiões. São ações mais no discurso do que na prática. As ações que precisam ser realizadas nas aldeias não foram realizadas de fato.

“As orientações da Sesai eram uma transposição das orientações do ministério da Saúde e muito pouco adaptadas à realidade indígena”, completa Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Fiocruz.

Ela diz que há uma falta de programação dos órgãos públicos, de estruturação dos planos de enfrentamento e de agilidade para fazer a máquina funcionar, de fato, e executar as ações necessárias. “Não tem uma postura de que essa pandemia e a cadeia de transmissão do vírus pode ser bloqueada e que isso tem de ser feito”.

SECRETÁRIO AMEAÇOU PROCESSAR INDÍGENAS

Chegada de cloroquina para indígenas em Roraima. (Foto: Reprodução)

O Ministério Público Federal investiga desde o dia 2 de julho a distribuição de cloroquina e o acesso a comunidades indígenas na TI Yanomami e na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, por agentes da Sesai, Ministério da Saúde, Ministério da Defesa e Funai. Entre os dias 30 de junho e 5 de julho, 21 profissionais de saúde das Forças Armadas estiveram na região para uma “missão de apoio”.

A denúncia ao MPF foi feita por indígenas da região. Em reunião com a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, o secretário Robson Santos da Silva ameaçou acionar judicialmente os indígenas. “Vamos entrar com uma ação contra o denunciante porque não é possível falar tanta bobagem e sair disso ileso”, disse Silva.

“Uma das acusações que mais me entristece é a ida à ação do Yanomami, onde se diz que se prescreveu cloroquina para indígena, o que não aconteceu”, afirmou à época. No entanto, o próprio Ministério da Saúde afirmou na nota sobre a missão ao DSEI Yanomami que entregaria insumos médicos como cloroquina e azitromicina para reforçar a assistência à saúde na região.

Com os estoques cheios de cloroquina, a pasta recorreu à distribuição do medicamento para populações indígenas. Em rara aparição em coletiva de imprensa, no dia 24 de julho, o ministro Eduardo Pazuello e sua equipe divulgaram que a pasta já havia distribuído 100,5 mil comprimidos de hidroxicloroquina para indígenas no país, conforme conforme noticiou o observatório: “Governo federal distribuiu 100 mil unidades de cloroquina para indígenas“.

TESTES SÃO FEITOS ‘PARA A IMPRENSA VER’

Na ação de saúde do DSEI Yanomami, 250 indígenas realizaram testes. “Não detectamos nenhum caso positivo, o que é sinal de um trabalho bem executado pelos órgãos que prestam serviço na região”, disse na ocasião o secretário Robson Santos da Silva.

Testes são eficazes? (Foto: Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus)

“O secretário diz que a situação está sob controle”, questiona Valéria Paye, da Coiab, em referência à possibilidade de falsos negativos em testes rápidos, como os aplicados no território. “Onde que está sob controle?”

Os testes rápidos ou sorológicos são recomendados apenas para atestar a imunidade dos pacientes e podem indicar resultado negativo mesmo na fase aguda da doença. A própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirma que esse tipo de teste tem “valor limitado para o diagnóstico de uma pessoa com suspeita de Covid-19”.

“As ações que estão sendo feitas são, em geral, uma visita rápida a regiões grandes”, explica Ana Pontes, cordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Abrasco. “Não está claro se há realmente uma estruturação do polo de atendimento naquela semana. São estratégias, aparentemente, voltadas para reforçar uma narrativa na mídia de que ‘estamos ali, estamos fazendo o bom uso do seu dinheiro'”.

CONTRA CRÍTICAS: ‘MOSTRA AS COISAS BOAS, OS CASOS DE SUCESSO’

Robson Santos da Silva costuma reclamar das críticas que a Sesai recebe pela gestão da crise causada pelo novo coronavírus entre os indígenas. Em um evento em Manaus, em maio, ele criticou a imprensa por ressaltar os casos confirmados e as mortes pela Covid-19, ignorando os pacientes que se recuperaram:

— Estamos aqui para ser criticados, mas mostra as coisas boas, os casos de sucesso. Estamos com quarenta mortes de saúde indígena, mas estamos com mais de 300 curas, tem que se falar da cura também, o esforço, a pessoa que sai e diz ‘eu fui salvo’.

Silva também apelou para a “união” e pediu positividade aos brasileiros. “Vamos jogar uma onda positiva no Brasil, vamos jogar uma onda boa”, sugeriu. “Não tô fazendo politicagem aqui não, é um apelo como cidadão”.

O secretário também se desentendeu com representantes indígenas durante reunião da Comissão Externa da Câmara dos Deputados de Enfrentamento à Covid-19, no dia 7 de julho. Os representantes afirmaram que está um curso um genocídio aos povos indígenas devido a pandemia e a omissão do Estado.

“Eu gostaria de refutar a palavra extermínio, genocídio“, afirmou Silva. “Estou aqui para promover saúde. Não sou criminoso de guerra. Não vejo isso por parte do governo. É uma palavra que vão tentar emplacar, mas isso não faz parte do nosso discurso”.

A editoria sobre pandemia deste observatório chama-se, desde o dia 03 de junho, De Olho no Genocídio.

SESAI EXCLUI DE ATENDIMENTO INDÍGENAS NÃO ALDEADOS

Região do Alto Solimões foi uma das fronteiras do contágio no oeste do Amazonas. (Foto: Divulgação)

Segundo a Sesai, o número de casos de Covid-19 entre indígenas no Brasil é de 18.404, com 322 mortes, de acordo com boletim divulgado na última terça (11). O órgão conta apenas os casos e mortes confirmadas entre indígenas aldeados, que somam mais de 750 mil.

A Apib avalia que a Sesai adotou o entendimento “absolutamente discriminatório e inconstitucional” de apenas prestar atendimento aos indígenas aldeados, que vivem em TIs homologadas, conforme trecho de ação protocolada pela associação no Supremo Tribunal Federal (STF). “Isso exclui tanto os índios que habitam terras em processo de demarcação, como também os que vivem em contexto urbano, mas que não se despem da sua identidade étnica por conta disso”.

Um estudo coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) mostrou que a prevalência do novo coronavírus entre a população indígena urbana é de 5,4%, contra 1,1% encontrada na população branca. O estudo nacional foi feito com 89.397 pessoas em 133 municípios.

A Coiab mostrou, em estudo publicado no dia 19 de junho, que a taxa de mortes por 100 mil habitantes entre os povos indígenas da Amazônia é 150% mais alta que a média do Brasil e supera em 20% a incidência de falecimentos por conta da doença na região Norte do país.

EM PARTE DAS ALDEIAS, EQUIPES DA SESAI FORAM VETOR DA DOENÇA

As equipes de atendimento de saúde da Sesai também podem ter contribuído para levar o vírus para dentro dos territórios. O primeiro caso de Covid-19 entre indígenas no Brasil foi registrado no dia 25 de março, no município amazonense de Santo Antônio do Içá, no Alto Rio Solimões. Uma jovem de 20 anos do povo Kokama foi contaminada após ter contato com um médico que veio de São Paulo e estava à serviço da Sesai.

O médico contaminado havia feito atendimento no DSEI Alto Rio Solimões menos de uma semana antes, no dia 19 de março. No dia 3 de maio, já eram 59 casos confirmados de Covid-19 no distrito sanitário. Atualmente, a região registra 30 mortes e 1,2 mil casos da doença.

No começo de junho, um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem e um agente de combate a endemias não-indígenas que atendem no DSEI Vale do Javari, no oeste do Amazonas, testaram positivo para Covid-19: “Alerta: profissionais da saúde contaminam-se no Vale do Javari, região de povos isolados“. O distrito sanitário atende indígenas de sessenta aldeias, incluindo povos de recente contato. A região também abriga povos indígenas isolados.

“Os representantes do Estado são os próprios vetores da doença para dentro dos territórios indígenas”, avalia Valéria Paye, assessora política da Coiab. “Isso demonstra a falta de cuidados e de ação preventiva”.

O próprio secretário da Sesai, que contraiu o vírus, é investigado pelo MPF no Distrito Federal desde 14 de maio. A Polícia Federal apura se o coronel da reserva Robson Santos da Silva e seu chefe de gabinete continuaram a trabalhar presencialmente em Brasília mesmo com o diagnóstico positivo. O prazo para a conclusão das investigações termina na quinta-feira, dia 14.

‘CHEGAM COM O REMÉDIO DEPOIS QUE ESTAMOS RECUPERADOS’

Ainda em maio, o secretário de Saúde Indígena foi surpreendido com o protesto de duas indígenas na aldeia São Luís, na TI Vale do Javari. As imagens foram gravadas pelos próprios indígenas e divulgadas com exclusividade pelo portal Amazônia Real no início deste mês. Na ocasião, Hilda Kanamari, de 57 anos, e Noemia Bohomi Kanamari, de 75, questionaram Silva pela demora no atendimento aos indígenas da região.

“Vocês esqueceram da gente”, disseram. “Agora que estamos recuperados, vocês chegam com os remédios”. Ele e outros integrantes da Sesai estiveram na aldeia para levar equipamentos como geradores de energia e radiofonia, além de medicamentos.

Mulheres indígenas protestam na TI Vale do Javari. (Foto: Lucinho Kanamari/Akavaja)

A aldeia funciona como polo-base de atendimento da Sesai. Por falta de experiência, a equipe da DSEI da região teve dificuldades com o atendimento no começo da pandemia.

“Eles estavam de mãos atadas e não sabiam como agir”, relatou Adelson Korá Kanamari. “Queriam fazer um trabalho como se faz no hospital. Diziam: ‘vamos isolar’, ‘tem que usar máscara’. Isso numa aldeia onde todos ficam juntos. Aí complicou tudo”.

Korá Kanamari afirmou que todos os indígenas da aldeia estão recuperados e que parte dos insumos fornecidos pela Sesai estão parados. “O apoio chegou atrasado”, afirmou, também para o Amazônia Real. “Tem muito material parado lá. Deveriam ter pensado antes, poderiam ter tomado medidas conversando com os indígenas”.

CORONEL PRESSIONOU CONTRA PLANO EMERGENCIAL

No dia 8 de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o Projeto de Lei (PL) 1142/2020, que prevê medidas de enfrentamento ao avanço da Covid-19 nos territórios quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais. Entre as medidas listadas no Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas estão o acesso a testes rápidos, medicamentos e equipamentos para identificar a doença,  profissionais de saúde com equipamentos de proteção individual, ações de tratamento hospitalar e controle de acesso às terras indígenas para evitar a propagação da doença.

O projeto teve dezesseis vetos de Bolsonaro. Catorze deles foram justificados com a ausência de demonstração do impacto financeiro das medidas.

Entre os dispositivos não autorizados pelo presidente estão a garantia de acesso a água potável, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de respiradores mecânicos e a distribuição gratuita de materiais de higiene nas aldeias. A Sesai é o órgão responsável por coordenar as ações do Plano Emergencial que envolvam os territórios indígenas.

Quando o projeto de lei foi aprovado na Câmara, no dia 21 de maio, o secretário Robson Santos da Silva passou a fazer lobby contra a aprovação do projeto. O militar enviou um áudio, dias depois da primeira aprovação, afirmando que o PL tornava a Sesai “inviável”. A mensagem era endereçada aos presidentes dos Condisis e aos coordenadores dos 34 DSEIs. O objetivo era pressioná-los para se manifestarem contra a aprovação do projeto.

No áudio, Silva também afirmou que o plano era fazer Bolsonaro vetar “para dizer que o presidente não gosta de indígena, de negro, dos povos tradicionais”.

SEM SESAI, INDÍGENAS SE ORGANIZAM PARA SALVAR VIDAS

Sem a assistência necessária da Sesai e da Funai, os indígenas precisaram se organizar de maneira autônoma para impor barreiras sanitárias e equipar as estruturas de atendimento nas aldeias. “Por conta da nossa imunidade ser diferenciada, por termos muitas crianças, pessoas de idade avançada, a gente iniciou essas barreiras sanitárias”, explica Issô Truká, membro da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme). “Nós temos perdido indígenas por desatenção da Sesai. É penoso”.

Barreira sanitária improvisada em São Paulo de Olivença, no Amazonas; mas nem sempre o governo está presente. (Foto: Sesai)

A Coiab tem usado recursos próprios e doações de parceiros para construir e equipar Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPIs) nos territórios. Só na região do Alto Rio Negro são mais de doze. “Foi uma resposta à falta de ação do governo”, explica Valéria Paye. “Nós temos comprado os equipamentos necessários para montar essa estrutura. A Sesai só precisa garantir o atendimento”. Em algumas localidades, são as prefeituras que têm assumido essa tarefa, mesmo sendo atribuição do governo federal.

Para a pesquisadora Ana Lúcia Pontes, estratégias de vigilância epidemiológica combinadas com o atendimento médico eficaz para os casos graves da doença podem reduzir a mortalidade entre indígenas. Atualmente, avalia a pesquisadora, a Sesai não tem conseguido implementar respostas satisfatórias para as duas ações:

— As duas pontas são frágeis. A ponta de vigilância, de conseguir bloquear a cadeia de transmissão e evitar com que a pandemia ocorra de uma maneira tão ampla, e a de estruturar uma resposta médica para diminuir a mortalidade.

SECRETÁRIO NÃO RESPONDE AOS PEDIDOS DE ENTREVISTA

Procurado pelo De Olho nos Ruralistas, o Ministério da Saúde enviou a seguinte resposta à reportagem:

“O Ministério da Saúde tem garantido assistência aos mais de 750 mil indígenas brasileiros aldeados durante a pandemia da Covid-19. Por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), reforçou o atendimento desde antes mesmo do decreto de pandemia feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dessa forma, foram realizadas ações de informação, prevenção e combate ao coronavírus, orientando comunidades indígenas, gestores e colaboradores em todo o Brasil. O Ministério da Saúde já investiu cerca de R$ 70 milhões em ações específicas para o enfrentamento da Covid-19, incluindo-se compras realizadas por cada um dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Até agora já foram enviados 789.273 mil itens. Todos esses insumos complementam os estoques próprios dos 34 DSEIs, que também mantém processos permanentes de aquisição de Equipamentos.

O Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas detalha como as equipes de saúde devem agir conforme cada caso. Os DSEIs também elaboraram Planos de Contingência Distritais, ou seja, cada um dos 34 DSEIs já tem um plano para as diferentes situações de enfrentamento da Covid-19 respeitando as características de cada povo e suas necessidades específicas. Todo esse planejamento e estudo antecipado resultam em atendimentos rápidos e eficientes executados diretamente nas aldeias.

Conforme dispõe a legislação em vigor, a população indígena especificamente residente em aldeia deve ter atendimento local de atenção básica à saúde ofertada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, por meio dos Distritos Sanitários Especiais (DSEIs) e suas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI). Em função disso, os indígenas residentes em regiões urbanas são atendidos pela rede pública de saúde estadual e municipal. Mais informações“.

Sílvia Waiãpi, antecessora de Silva na Sesai, com o ruralista Luis Carlos Heinze no Senado. (Foto: Reprodução)

A reportagem do De Olho nos Ruralistas também entrou em contato diretamente com a Sesai, enviou uma série de questionamentos e solicitou uma entrevista com o secretário Robson Santos da Silva no dia 30 de junho. No dia 2 de julho, a assessora de imprensa do órgão afirmou que aguardava resposta da área responsável. Uma nova solicitação foi feita no dia 14 de julho, mas nenhuma resposta foi enviada.

O mesmo aconteceu com o presidente da Funai, Marcelo Xavier, procurado várias vezes pela reportagem. Após a publicação, ele disse que vai processar o observatório.

Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Imagem principal (Reprodução): Robson Santos da Silva, da Sesai, em vídeo divulgado em fevereiro

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