Sessão do Tribunal Permanente dos Povos acontece nos dias 24 e 25; acusação não trata apenas da omissão do governo brasileiro, mas da intenção do presidente de usar a pandemia como ferramenta para atacar populações negras e indígenas, tidas por ele como descartáveis
Por Juliana Monteiro, de Roma
Na 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), as atenções estarão voltadas para o Brasil e o crime continuado que teve início após o resultado das eleições de 2018, cujo capítulo mais indigno, até agora, foi escrito durante a crise da Covid-19. O julgamento acontece entre os dias 24 e 25 de maio, das 8h45 às 13h30 (horário de Brasília), em Roma, a capital italiana. Com transmissão direta no Largo do São Francisco, em São Paulo.
O relatório que embasa a denúncia tem como cabeçalho “A pandemia e o desmonte do Estado” e leva a assinatura das vítimas preferenciais: os indígenas, a população negra, os defensores dos direitos humanos e os servidores públicos, mais especificamente os trabalhadores da área da saúde. Mais abaixo, ainda na capa da ata, o alvo da acusação: Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil.
A escolha em denunciar nominalmente o presidente, e não o governo como um todo, parte da tese de que, embora existam flagrantes violações de direitos em praticamente todos os âmbitos do governo federal, tudo faz parte do projeto de poder do mandatário. Quem explica é Laura Greenhalgh, diretora-executiva da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns:
— Demonstramos que o presidente não visava debelar a crise, escutar a ciência para tentar controlar a pandemia, não tinha interesse em adquirir vacinas ou medicamentos e que isso não é por acaso. Havia intenção de transformar os últimos anos em um processo de profunda confusão política, enfrentamento das instituições e tentativa de criar instabilidade jurídica no país. Demonstra que o presidente agiu dentro de um roteiro pré-estabelecido por ele e seus apoiadores mais próximos. E que, no meio disso, a pandemia grassou à vontade.
Portanto, a acusação que o grupo leva ao TPP não trata somente da omissão do governo brasileiro, mas da intenção de usar a emergência sanitária como “ferramenta para atacar populações tidas pelo presidente como descartáveis”. A leitura das noventa páginas da ata acusatória é uma indigesta retrospectiva do percurso do país até o saldo de mais de seiscentos e quarenta mil mortos pela Covid-19, de 2020 para cá.
No texto, subscrito pela Comissão Arns, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela Coalizão Negra por Direitos e pela Internacional de Serviços Públicos (API), estão contidas as falas presidenciais minimizando a pandemia, os incentivos à desobediência às normas de distanciamento, os desmentidos à ciência, os atrasos na aquisição de vacinas, os atos normativos, as omissões e os boicotes em relação às medidas sanitárias.
Todos esses atos e essas informações buscam comprovar a “estratégia deliberada de contaminação de brasileiros e estrangeiros vivendo no país, através da instrumentalização e perversão de instituições do estado brasileiro e do abuso de poderes normativos presidenciais”. O documento que será apresentado ao Tribunal classifica a atuação do governo como deliberada, organizada e intencional.
Em 2020, De Olho nos Ruralistas retratou, na série Esplanada da Morte, o papel de cada ministro — entre a omissão e a atuação deliberada — na política genocida capitaneada por Bolsonaro. A opção editorial por uma cobrança contundente inclui outros atores políticos, que tiveram nas mãos o poder de frear a matança.
DENÚNCIA DIZ QUE VÍRUS FOI LEVADO ÀS ALDEIAS POR AGENTES DO ESTADO
No capítulo dedicado à apresentação dos fatos que embasam a denúncia, estão descritos os eventos narrados no noticiário nos últimos dois anos com mais ou menos destaque, sobretudo pela ênfase dada ao impacto dos desmandos sobre as populações mais vulneráveis que, muitas vezes, ocuparam espaço periférico na maior parte da cobertura jornalística.
Chama a atenção a denúncia das inúmeras violações de direitos sofridas pela população indígena, a mais afetada pela pandemia em termos relativos. O texto indica, por exemplo, que há indícios de que o vírus foi levado às aldeias pelos próprios agentes de saúde do Estado ou em atos e atividades promovidos diretamente pelo governo.
Cita, ainda, denúncia da Hutukara Associação Yanomami de que equipes do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) teriam desviado vacinas para garimpeiros em troca de ouro e até mesmo o veto do presidente a dispositivos de lei que garantiam o acesso dessas comunidades à água potável. A denúncia menciona a execução de um plano deliberado de fazer das populações indígenas grupos de ensaios para testagem empírica de medicamentos e acusa o governo não só de facilitar, mas de forçar o contato de indígenas isolados com o vírus da Covid-19.
Segundo Laura Greenhalgh, é especialmente calamitosa a situação do povo Yanomami. “São mais de 20 mil garimpeiros na região. Não é por acaso que as denúncias de violências se sucedem”. Ela diz que essa presença hostil ameaça os povos isolados. Muitas vezes, são comunidades com poucos indivíduos, mas que portam um saber, uma língua, uma ancestralidade, uma visão de mundo. “Quando um desses povos desaparece, perdemos uma matriz humana. Não é apenas uma perda para o Brasil, mas uma perda para a humanidade”.
A diretora-executiva completa: “Os povos indígenas não conquistaram direitos com a constituição, esses direitos já existiam, são direitos de origem que a constituição apenas reconheceu. O que está em curso é o extermínio desses povos, por isso essa política tem, sim, um caráter genocida”.
ESTUDOS MOSTRAM QUE UM TERÇO DAS MORTES PODERIAM TER SIDO EVITADAS
A denúncia não economiza na transcrição das falas presidenciais, que têm potencial de mobilizar o júri, dado seu teor desumanizante e, muitas vezes, perverso. Em conversa com a reportagem, a diretora-executiva da Comissão Arns fala de estudos que, em uma estimativa conservadora, mostram que um terço das mortes da pandemia poderiam ter sido evitadas, o que representa mais de duzentas mil vidas:
— Nós nos enganaremos se acharmos que este presidente vive dos improvisos. Ele tem método, é assessorado para isso e tem um objetivo muito claro que é um atentado à democracia brasileira.
Laura lembra da declaração emblemática do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, vazada de uma reunião ministerial: “O que é ‘passar a boiada’? É permitir o garimpo e a mineração ilegais nas terras indígenas, o desmatamento que voltou a níveis alarmantes e tem a ver com o comércio internacional de madeiras que move muito dinheiro. A fala do ministro de triste memória ilustra nossa tese”.
POSSÍVEL CONDENAÇÃO DEVE AMPLIFICAR VOZES DAS VÍTIMAS
O julgamento será dividido em dois blocos. Nesta terça-feira (24), serão ouvidos os representantes dos profissionais de saúde e da população negra. Na quarta-feira (25), será a vez dos povos indígenas e da defesa do presidente Jair Bolsonaro.
Apesar da gravidade das acusações, ainda não consta que o governo enviará defensor. Nesse caso, segundo o estatuto do TPP, fica a critério do presidente do júri, Luigi Ferrajoli, a decisão de considerar as provas apresentadas suficientes ou requerer envio de documentação oficial complementar relativa a alguns pontos. “Os juízes gostariam de ouvir a defesa do governo”, declara Laura Greenhalgh, acrescentando que o espaço estará aberto. “Mas não vamos designar defensor público, nem advogado para fazer as vezes de advogado do presidente. Não é um circo”.
A acusação irá enfatizar que, passados três anos de mandato do presidente Jair Bolsonaro e uma profusão de violações às normas nacionais e internacionais de direitos humanos, mesmo depois de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) produzir um impressionante relatório repleto de provas dos crimes cometidos durante a pandemia, não há sequer uma investigação formalmente aberta para apurar seus atos. As populações afetadas pela política criminosa do governo não foram ouvidas pelas autoridades brasileiras e, por isso, a decisão de seus representantes de recorrer às instâncias internacionais de responsabilização jurídica, política e moral.
Ainda que o Tribunal Permanente dos Povos seja um tribunal de opinião, e não propriamente um tribunal penal, a expectativa das instituições responsáveis pela denúncia é de que uma possível condenação de Bolsonaro sirva para consolidar o juízo sobre os crimes cometidos pelo presidente brasileiro, assim como para embasar as discussões em torno de tratados, pactos e convenções internacionais, como tem acontecido desde a fundação do TPP.
Além disso, contam com o canal sempre aberto entre o TPP e o Tribunal Penal Internacional de Haia, esse sim capaz de imputar penas aos crimes denunciados. Laura sublinha a importância de amplificar a voz das vítimas que estarão presentes nos dois dias do julgamento. “Hoje nós temos um procurador-geral que é uma das figuras mais lamentáveis da república, porque não cumpre aquilo que é sua função como chefe do Ministério Público”, opina. “O Brasil está passando por um momento tão difícil que temos que falar para fora das nossas fronteiras”.
OBSERVATÓRIO CRIOU, EM 2020, A EDITORIA DE OLHO NO GENOCÍDIO
De Olho nos Ruralistas chama o genocídio de genocídio. Por isso criou, em 2020, ainda no início da pandemia, uma editoria com esse nome, De Olho no Genocídio. O observatório considera explícitas as demonstrações de Bolsonaro nesse sentido, da retirada de máscaras de crianças à cloroquina levada por militares a territórios indígenas. A série Esplanada da Morte procurou detalhar as articulações de cada ministério em torno desse projeto de destruição e morte.
No ano passado, a editoria tornou-se também uma série de vídeos, com o mesmo nome, De Olho no Genocídio. O primeiro deles resume a linha editorial: “Genocida, Sim“. O papel do mercado e da imprensa nessa matança motivaram vídeos específicos, assim como o papel dos militares, de Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde, dos parlamentares, entre eles Ricardo Barros e Osmar Terra.
Confira aqui vídeo feito em homenagem às primeiras 500 mil vítimas do genocídio: “Maior homenagem às vítimas será um país com memória“.
| Juliana Monteiro é jornalista. |
Foto principal (Apib): líderes indígenas são criminalizados por denunciar o genocídio dos povos originários, agravado durante a pandemia
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