No Piauí, a velha relação entre políticos e a grilagem de terras

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Nos último cinco anos, De Olho nos Ruralistas mostrou o histórico ruralista no estado do ministro Ciro Nogueira, dono de empresa suspeita de invadir terras da União; povos do campo relatam violência e descaso antes e durante a pandemia

Por Nanci Pittelkow

O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), grande defensor de Bolsonaro na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, é dono de uma empresa suspeita de invadir terras da União no Piauí, além de manter áreas improdutivas para especulação. Sua mulher Iracema Portella (PP) declara-se dona de uma ilha em uma reserva extrativista no Maranhão. O ex-vice-governador Wilson Martins (PSB) foi acusado de beneficiar aliados na liberação de terras suspeitas de grilagem.

Mesmo um político de fora do Estado, o paranaense e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), tem terras em área de conflito no Piauí. Assim como o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que possui fazendas na região e garante verbas do tratoraço para seus aliados locais.

Fronteira agrícola do Matopiba, região do Cerrado que engloba também áreas do Maranhão, Tocantins e Bahia, o Piauí sofre o aumento no número de casos de violência, grilagem e conflitos por terra, situação que não melhorou com a chegada da pandemia.

A questão agrária no Piauí foi retratada durante os cinco anos de existência do observatório. De Olho nos Ruralistas publica, desde setembro, uma retrospectiva desse período. Os primeiros foram os estados do Sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e depois o Sudeste, pela ordem: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Os estados nordestinos da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará deram sequência.

CASAL NOGUEIRA-PORTELLA É HERDEIRO DE DINASTIAS POLÍTICAS

Ciro Nogueira e sua mulher Iracema Portela possuem terras em área da União. (Foto: Instagram)

Retratado na cobertura eleitoral do De Olho nos Ruralistas em 2018, Ciro Nogueira foi reeleito para o Senado. Está licenciado. Seu pai é o ex-deputado federal Ciro Nogueira Lima (DEM), falecido em 2013. Seu irmão, Raimundo Neto, foi presidente da Águas e Esgotos do Piauí S.A. e é investigado em dois inquéritos sobre crimes ambientais. Alvo de cinco processos no Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente nacional do Partido Progressista é dono da Ciro Nogueira Agropecuária e Imóveis Ltda, acusada de apropriação de área pertencente ao Departamento Nacional de Infraestrutura (DNIT) na capital Teresina, em 1985.

Seu patrimônio cresceu 1.081% entre 2010 e 2018, de R$ 1,9 milhão para R$ 23,3 milhões. As terras, no entanto, foram declaradas por parentes. A mãe de Ciro, Eliane Nogueira (PP), sua primeira suplente no Senado, registrou duas fazendas em Teresina.

As terras da família Nogueira não têm sido dedicadas exatamente à produção. Em julho de 2017, cerca de mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Junco, que não consta nas declarações entregues à Justiça Eleitoral. Lideranças do movimento relataram ter encontrado uma área sem qualquer cultivo ou criação de animais. Segundo a dissertação da pesquisadora Sandra Helena Gonçalves, em 2010, Ciro Nogueira possuía 4.995 hectares improdutivos.

A mulher de Ciro Nogueira, deputada federal reeleita Iracema Portella, declarou uma gleba de 659 hectares em Água Doce (MA). O caso foi detalhado em reportagem do observatório: “Mulher de Ciro Nogueira, deputada Iracema Portella tem ilha em reserva extrativista no MA”, e em notícia sobre mais dois deputados que declaram propriedades em área pública.

Ela também é herdeira de uma longa linhagem de políticos. Seu pai, Lucídio Portella Nunes, foi governador biônico do Piauí durante a ditadura militar, indicado por Ernesto Geisel. A deputada é sobrinha de outro ex-governador, Petrônio Portella, conhecido como “estrela civil da ditadura” por seu papel como articulador político no Senado durante a abertura promovida por Ernesto Geisel e João Figueiredo.

POLÍTICOS DE OUTROS ESTADOS TÊM FAZENDAS E PODER NO PIAUÍ

O paranaense Ricardo Barros tem terras em área de conflito no Piauí. (Foto: Agência Brasil/EBC)

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), é dono de um latifúndio de mais de 5 mil hectares a milhares de quilômetros de sua terra natal. Apesar de ter feito sua carreira política no Paraná, a propriedade de Barros fica no município de Baixa Grande do Ribeiro, no Piauí. Assim que o deputado assumiu o papel de defender o governo Bolsonaro na Câmara, De Olho nos Ruralistas informa: “Novo líder do governo na Câmara tem latifúndio em região de conflitos no Piauí”. Barros também figura na retrospectiva de cinco anos do estado do Paraná.

No Piauí ficam as terras do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Em maio de 2021, as denúncias sobre o tratoraço, orçamento secreto do governo federal, mostraram que “Ibaneis direcionou verbas federais para máquinas no Piauí, onde tem fazenda”. O Estadão publicou as informações sobre o orçamento, o De Olho assinalou a propriedade das fazendas.

O governador do MDB teria tido uma cota de R$ 15 milhões de verbas federais, mas não para o Distrito Federal. A série do Estadao conta que boa parte dos recursos utilizados por parlamentares que apoiam Bolsonaro são destinados para a compra de tratores e outros equipamentos para uso para prefeituras.

WILSON MARTINS É SUSPEITO DE AJUDAR NO ESQUEMA DE GRILAGEM 

Em 2018, o observatório traçou o perfil dos políticos ruralistas do estado. Entre eles o ex-vice-governador Wilson Martins (PSB), candidato derrotado ao Senado em 2018. Desde 2009, quando era vice de Wellington Dias (PT), Martins acumula relações com pecuaristas e denúncias relacionadas à grilagem de terras.

Em 2014, ele foi acusado de beneficiar um aliado político, Nonato Marreiros, diretor administrativo da Águas e Esgotos do Piauí S/A na compra de 2.500 hectares em Uruçuí. Mesmo sem ter iniciado nenhum cultivo, Marreiros teve acesso ao desconto dado por lei estadual a quem cumprisse a função social e estivesse produzindo na terra. Pagou R$ 625 mil por terras avaliadas em R$ 6,5 milhões. Em 2012, Wilson Martins passou a ser investigado pelo Ministério Público do Estado por irregularidades na concessão de 61 títulos de propriedade rural transferidos em 2012, durante sua gestão.

Ex-vice-governador Wilson Martins ao lado de Ciro Nogueira. (Foto: Facebook)

Os lotes totalizavam 21 mil hectares e, segundo a denúncia, favorecia Alverito Pereira Lopes, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Baixa Grande do Ribeiro, onde era vereador pelo PPS. Alverito Lopes foi alvo de inquérito em 2017 por ameaçar camponeses em Baixa Grande, facilitando a ação de empresas grileiras. Uma dessas empresas, a Sorotivo Agroindustrial, citada pela grilagem de 27 mil hectares, pertence ao Grupo Insolo, um dos operadores do fundo de pensão da Universidade de Harvard, que vinha adquirindo terras no estado para especulação financeira. De acordo com relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, o fundo de Harvard possui 153 mil hectares no Piauí.

Em 2009, ainda vice-governador, Martins recebeu a atriz global Regina Duarte e seu marido, o pecuarista Eduardo Lippincott, interessados em investir no Piauí. O facilitador da reunião, Herbert Spencer Miranda Carranca, foi um dos protagonistas da série De Olho no Paraguai, que trata da expansão do agronegócio brasileiro sobre o país vizinho. No Chaco paraguaio, sua empresa é acusada de expulsar indígenas isolados da etnia Ayoreo. Atual presidente do PSB no estado, Wilson Martins se articula para disputar uma vaga na Câmara em 2022.

BANCADA RURALISTA DO PIAUÍ MANTÉM QUATRO NOMES

Além do senador licenciado Ciro Nogueira, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) conta com três deputados, perfazendo o mesmo número de integrantes da legislação anterior. Vieram de mandatos anteriores os deputados Átila Lira (PSB) e Júlio Cesar (PSD). Margarete Coelho (PP) entrou em 2019, mesmo sem declarar nenhuma propriedade rural.

No Congresso desde 1987, Átila Lira concorreu a seu oitavo mandato e se reelegeu. Atualmente é dono de 240 hectares de terras no Piauí. Em oito anos, sua fortuna multiplicou por oito. Em 2010, o pecuarista declarou R$ 1.150.129,46 de patrimônio à Justiça Eleitoral. Nas últimas eleições, foram declarados R$8.827.581,72.

Seu colega Júlio Cesar (PSD) é dono da Agropecuária Guadalupe e da Agrolupe Florestal, ambas no município de Guadalupe, onde ele foi prefeito por duas vezes: de 1977 a 1985 e de 1989 a 1991. Como deputado, Júlio Cesar presidiu a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural entre 2011 e 2013. E defendeu recentemente a redução de taxação para exportação de suco de laranja.

CAMPONESES VIRAM AGRESSÕES AUMENTAREM NA PANDEMIA

Na rota de expansão do agronegócio, o Piauí tem assistido à proliferação dos casos de grilagem. Em 2017, o observatório publicou uma série de casos na região do Matopiba. O território piauiense foi destaque pela violência comparada ao Pará, estado da Amazônia Legal com mais conflitos de terra. Com um amplo estoque de áreas a preços atrativos, o sul do estado atrai a atenção de investidores – tanto brasileiros como empresas transnacionais – e vem provocando uma escalada nas disputas e conflitos fundiários.

“Se nos expulsarem das nossas terras, onde trabalharemos”, diz cartaz em casa de camponês. (Foto: CPT Piauí)

A chegada da pandemia da Covid-19 não evitou ou reduziu casos de violência contra camponeses. Do decreto de calamidade pública de 20 de março — quando camponeses, quilombolas e populações extrativistas passaram a adotar o isolamento como medida de prevenção à Covid-19 — até agosto de 2020, foram registrados seis conflitos por terra no Cerrado piauiense, que impactaram mais de cem famílias. Os camponeses precisaram se expor à Covid para denunciar invasões.

Comunidades tradicionais sofreram ainda com descaso e racismo. Pelo menos 1.400 doses de vacina contra a Covid-19, que deveriam ter sido destinadas a todo o Território Quilombola Lagoas, foram desviadas, de acordo com levantamento da Comissão para Acompanhamento de Demandas Quilombolas da Defensoria Pública do Estado do Piauí. A Associação Territorial do Quilombo Lagoas e docentes da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) encaminharam denúncia ao Ministério Público Federal e à Defensoria Pública do Estado.

SOJEIROS CONTAMINAM PIAUIENSES COM AGROTÓXICOS

Um estudo feito em 2018 com mulheres expostas ao glifosato em Uruçuí, no sul do Piauí, região de cultivo de soja, milho e algodão, mostrou que uma em cada quatro grávidas da cidade sofreu aborto espontâneo e que 83% das mães tiveram o leite materno contaminado. Esse foi um dos casos apesentado na reportagem: “Algodão é responsável por 10% do total de pesticidas usado no Brasil, diz relatório”.

Um sojeiro do mesmo município, Sérgio Luis Bortolozzo, vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), recebeu um convite oficial da Organização das Nações Unidas (ONU) para integrar o Champions Network for the Food System Summit. Apesar de ser defensor dos agrotóxicos. O grupo da ONU que realiza esse debate é geralmente composto por pessoas com histórico de atuação no combate à fome e na defesa do ambiente e dos direitos humanos.

EM CINCO ANOS, OBSERVATÓRIO EXPÕE OS DONOS DO BRASIL

A comemoração dos cinco anos do De Olho nos Ruralistas traz ainda várias peças de divulgação, visando a obtenção de mais 500 assinaturas, por um lado, e levar as informações a um público mais amplo, por outro. É urgente a necessidade de o país conhecer melhor o poder dos ruralistas e de formar no Congresso uma bancada socioambiental, um conjunto de parlamentares que defendam direitos elementares, previstos na Constituição e nos pactos civilizatórios internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Assista ao vídeo do aniversário:

No dia 14 de setembro, inauguramos a versão audiovisual da editoria De Olho na Resistência, que divulga informações sobre as iniciativas dos povos do campo e as alternativas propostas para o ambiente e a alimentação saudável. Você pode apoiar o observatório aqui.

Nanci Pittelkow é jornalista. |

Imagem principal (De Olho nos Ruralistas/CPT): no Piauí, os povos do campo tentam defender seus territórios

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