Usineiros e seus herdeiros protagonizam conflitos agrários em Pernambuco

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Endividadas, velhas oligarquias do setor sucroenergético continuam dando as cartas na política pernambucana; em cinco anos, observatório cobriu conflitos envolvendo famílias tradicionais do estado, com laços que remontam ao período colonial

Por Bruno Stankevicius Bassi

Do sertão à zona da mata, Pernambuco é um estado marcado pelos conflitos rurais. Entre ameaças de despejo e tentativas de assassinato, camponeses e indígenas disputam, palmo a palmo, o direito de permanecer em seus territórios. Em cinco anos de atividade, De Olho nos Ruralistas cobriu a luta pela terra e revelou os rostos por trás da violência em Pernambuco, incluindo algumas das famílias que comandam a política pernambucana desde os tempos do Brasil Colônia.

O estado é o quarto da região Nordeste a ser retratado na retrospectiva de aniversário do observatório, seguindo Bahia, Sergipe e Alagoas. A série teve início em setembro e começou com os estados das regiões Sul e Sudeste.

Líder em ocorrências de violência contra povos do campo de Pernambuco, o setor sucroenergético dominou boa parte das reportagens publicadas sobre o estado desde a fundação do De Olho nos Ruralistas, em 2016. Um dos casos mais emblemáticos é o da comunidade do Engenho Fervedouro, em Jaqueira (PE). Desde 2018, as setenta famílias que vivem na região vem sendo ameaçadas por seguranças da Agropecuária Mata Sul S/A, empresa que adquiriu os direitos de exploração da área, anteriormente pertencente à Usina Frei Caneca.

Em maio de 2020, a reportagem mostrou a participação irregular de policiais militares na repressão a camponeses. Os posseiros denunciaram ainda o emprego de helicópteros e aviões agrícolas, que despejaram agrotóxicos sobre uma das roças, matando a plantação: “Helicópteros, PMs, drones, chuva de agrotóxicos: os ataques contra camponeses em um engenho em Pernambuco“.

Os ataques continuaram ao longo da pandemia. Dois meses depois, em julho, um dos líderes da comunidade foi baleado durante uma emboscada. Apesar de receber sete disparos, ele sobreviveu. As ameaças seguiram em 2021 quando, em uma área vizinha, no Engenho Barro Branco, seguranças da Mata Sul abriram fogo para expulsar agricultores que lavravam suas roças: “Cresce a violência contra 5 mil famílias na Zona da Mata de Pernambuco“.

VIOLAÇÕES DE DIREITOS ENVOLVEM FAMÍLIAS PODEROSAS

O manto de impunidade que reveste o caso da Mata Sul não ocorre à toa. Com sede em Boa Viagem, bairro tradicional de Recife, a empresa pertence ao empresário Guilherme Cavalcanti de Petribú de Albuquerque Maranhão, em cuja linhagem estão algumas das principais famílias do estado — todas elas vinculadas à produção de cana de açúcar. Ele é irmão do prefeito Marcello Maranhão (PSB), de Ribeirão, município a menos de uma hora de carro de Jaqueira.

O ex-senador Armando Monteiro foi destaque na cobertura eleitoral, em 2018. (Imagem: Baptistão/De Olho nos Ruralistas)

Guilherme não é o único usineiro com laços antigos na política pernambucana. Ex-senador e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior durante o governo de Dilma Rousseff, Armando Monteiro Neto (PSDB) pertence a uma das famílias mais antigas do estado. A partir da Usina Cucaú, o clã dos Queiroz Monteiro construiu um império que se estende para outras áreas, como o Banco Mercantil e o jornal Folha de Pernambuco.

Figura influente da bancada ruralista no Senado, Monteiro tentou alçar voos mais altos em 2018, quando disputou o governo do estado. Ele perdeu a disputa para o então governador Paulo Câmara (PSB), que se reelegeu em primeiro turno com 50,7% dos votos. De qualquer modo, a política tem dado retorno a Monteiro. Em 2006, ele declarou ter R$ 1,1 milhão à Justiça Eleitoral. Doze anos depois, seu património multiplicou-se por 16, com um patrimônio declarado de R$ 16,8 milhões, em 2018.

O que pouca gente sabe é que a família também possui um amplo histórico de conflitos fundiários. Irmão de Armando, o empresário Eduardo Queiroz Monteiro, que comanda as empresas do clã, é o recordista de trabalho escravo no Brasil. Entre 2001 e 2009, 1.406 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão na Destilaria Araguaia (antes chamada Gameleira), pertencente a uma das empresas do grupo. Relembre aqui.

Também ligado a violações trabalhistas, o Grupo João Santos foi tema de reportagem em maio de 2021, quando tornou-se alvo de uma operação da Polícia Federal. Dono da TV Tribuna, retransmissora da Rede Bandeirantes em Pernambuco, o conglomerado sucroenergético passou a ser investigado após indícios de que os herdeiros do grupo estariam desviando o patrimônio das empresas do grupo para “laranjas” na tentativa de evitar o pagamento de tributos e direitos trabalhistas de centenas de empregados: “Alvo da PF, Grupo João Santos tem dívida tributária de R$ 9 bi e histórico de trabalho escravo“.

NO ‘FEUDO DO AÇÚCAR’, A FOME AVANÇA

O Grupo João Santos não é o único conglomerado sucroenergético no estado a enfrentar dívidas e falência. Em 2019, durante o especial De Olho nas Dívidas, o observatório revelou que setor acumula R$ 69,2 bilhões em dívidas com a União. Dentre os principais “caloteiros”, estão usinas tradicionais como a Cucaú (pertencente à família Queiroz Monteiro) e a Cruangi, outra que possui histórico de trabalho escravo.

Em 2020, observatório analisou como os candidatos à prefeitura de Recife tratavam o tema da fome. (Imagem: De Olho nos Ruralistas)

Mesmo endividadas, as oligarquias locais continuam dando as cartas na política pernambucana. Os poucos atores que conseguem romper a alternância de poder entre os herdeiros dos antigos latifúndios enfrentam forte reação. Este é o caso do cacique Marcos Xukuru, impedido de assumir a prefeitura de Pesqueira desde que venceu o pleito, em outubro do ano passado. Filho do cacique Xicão, líder assassinado em meio à luta pela demarcação do Território Xukuru em 1998, Marcos foi barrado com base na Lei da Ficha Limpa, embora não tenha participado do crime patrimonial que lhe foi imputado.

Ameaça crescente sob o governo de Jair Bolsonaro, a fome foi um dos eixos da cobertura eleitoral do De Olho nos Ruralistas em 2020. Com índices crescentes de insegurança alimentar, Pernambuco registrou cenas de distribuição de cestas básicas a famílias carentes por prefeitos que disputavam a reeleição em 2020, conforme noticiamos aqui. Mesmo diante da gravidade do tema, o problema foi pouco pautado na disputa pela capital.

Vencedor na disputa contra Marília Arraes (PT), o prefeito eleito João Campos (PSB) sequer citou as palavras “fome”, “alimentação”, “comida” ou “segurança alimentar” em seu plano de governo. Filiados a partidos de esquerda e centro-esquerda, os dois jovens políticos são primos e herdeiros das velhas oligarquias do estado.

IMPACTO DA PANDEMIA FOI RETRATADO PELO OBSERVATÓRIO

Um dos primeiros estados a registrar casos de Covid-19 no Brasil, Pernambuco foi tema central na cobertura sobre pandemia. Ainda em abril, poucas semanas após o país decretar “estado de calamidade” em decorrência do novo coronavírus, De Olho nos Ruralistas registrou os primeiros dois casos da doença entre indígenas do estado, das etnias Pankararu e Atikum. A pandemia também impactou severamente as comunidades quilombolas de Pernambuco: “Quilombos de Pernambuco, Amapá, Pará e Goiás já têm mortes por coronavírus“.

Ao todo, foram 22 indígenas e 16 quilombolas mortos pela Covid-19 no estado, segundo dados compilados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Mas o ataque aos povos do campo promovido por Bolsonaro não é apenas sanitário. Em 28 de outubro de 2018, em “comemoração” à vitória eleitoral do líder da extrema-direita, grupos bolsonaristas incendiaram uma escola e um ambulatório na comunidade Bem Querer de Baixo, do povo Pankaruru. Era apenas o início da pandemia de violência que assola os povos indígenas.

EM CINCO ANOS, OBSERVATÓRIO EXPÕE OS DONOS DO BRASIL

A comemoração dos cinco anos do De Olho nos Ruralistas tem ainda várias peças de divulgação, visando a obtenção de mais 500 assinaturas, por um lado, e levar as informações a um público mais amplo, por outro. É urgente a necessidade de o país conhecer melhor o poder dos ruralistas e de formar no Congresso uma bancada socioambiental, um conjunto de parlamentares que defendam direitos elementares, previstos na Constituição e nos pactos civilizatórios internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Assista ao vídeo do aniversário:

No dia 14 de setembro, inauguramos a versão audiovisual da editoria De Olho na Resistência, que divulga informações sobre as iniciativas dos povos do campo e as alternativas propostas para o ambiente e a alimentação saudável. Você pode apoiar o observatório aqui.

Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

Imagem principal (Montagem com foto de Divulgação/MST): conflitos e despejos avançam sobre polo sucroalcooleiro

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