Entre 1970 e 1985, estima-se que mais de 400 mil brasileiros tenham se estabelecido no país vizinho. Esse movimento fez, aos poucos, o enclave sojeiro ao leste do Paraguai formar um território similar, em tamanho, àquele cedido ao Brasil após a Guerra da Tríplice Aliança. Vários fatores convergiram para esse cenário, mas se um deles puder ser escolhido ele atende pelo nome de Alfredo Stroeesner – e a ditadura que ele chefiou.

Ao seleto clube dos amigos do ditador foram outorgados mais de 6 milhões de hectares. Uma média de 4.600 hectares por pessoa. Muitos deles eram militares e dirigentes do Partido Colorado, que venderam suas propriedades a colonos e latifundiários brasileiros, fazendo fortuna com terras com as quais não tiveram praticamente nenhum gasto.

Nesse momento nasceram muitos dos atuais conflitos entre brasileiros e camponeses paraguaios, uma vez que essas terras seriam originalmente destinadas à reforma agrária. Como se deu esse processo? E o que teria levado milhares de brasileiros a cruzar a fronteira para se estabelecerem no Paraguai?

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64,1% das terras privadas no Paraguai apresentam irregularidades em seu histórico dominial. Isto representa 19,3% do território paraguaio. Uma área equivalente a um Panamá em terras griladas.

UMA DITADURA NADA ENVERGONHADA

Em 1954, um golpe de Estado orquestrado pelo Exército paraguaio – com o apoio do tradicional Partido Colorado – levou ao poder o General Alfredo Stroessner. Durante os 35 anos em que exerceu a Presidência, utilizou a concessão de terras como recurso para manter o silêncio e a lealdade de seus aliados políticos. Os números são superlativos.

A Comisión de Verdad y Justicia, criada em 2005 com o propósito de investigar as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura, examinou mais de 200 mil títulos de propriedade rural outorgados entre 1954 e 2003. Em seu relatório final, constatou que 4.241 propriedades, correspondentes a 7.851.295 hectares, apresentavam graves irregularidades – que tornariam esses títulos nulos.

A comissão apurou que 86% das irregularidades ocorreram durante a ditadura de Stroessner. Foram 6.744.005 hectares entregues por meio do Instituto de Bienestar Rural, sob o pretexto de promover a reforma agrária. A ausência de cadastro fundiário no Paraguai levou a um processo de títulos-beliche, onde um único lote chega a ter três ou quatro títulos de propriedade diferentes. Somados, esses títulos de terra excedem em 124 mil km² o território paraguaio.

Tranquilo Favero, maior produtor invidual de soja do Paraguai (Foto: Veja/Divulgação Grupo Favero)

BRASIGUAIOS OU BRASILEIROS?

Um dos pilares da política econômica de Stroessner estava na modernização conservadora da agricultura. Seu objetivo era converter o Paraguai: de nação camponesa para exportador de gêneros agrícolas de alto consumo. A “solução” foi aproveitar os brasileiros, que possuíam experiência na monocultura mecanizada de soja na região Sul. Além disso, a estrutura de concentração fundiária que se expandia no Paraná a partir da Revolução Verde gerou uma enorme massa de camponeses sem-terra, que marcharam para Oeste buscando novas terras produtivas.

Ao vender uma pequena propriedade de 20 hectares no Brasil, um colono podia comprar o dobro ou o triplo no Paraguai. Junto a isso, Stroessner ofereceu créditos subsidiados pelo Banco Nacional de Fomento del Paraguay, incentivos agrícolas do Plan del Trigo e revogou em 1967 a lei que impedia a venda de terra para estrangeiros na região de fronteira.

O Brasil protelava sua reforma agrária ao terceirizar o problema para o país vizinho. Conforme minguavam os créditos, porém, durante a “década perdida” de 1980, centenas de brasileiros – muitos dos quais tiveram filhos nascidos no Paraguai – tentaram voltar ao Brasil pela fronteira em busca de melhores condições. Por não residirem no Brasil, tiveram sua cidadania negada. Tampouco eram reconhecidos no Paraguai como paraguaios. Tornaram-se apátridas. Daí surge o termo “brasiguaio”.

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Tranquilo Favero teria recebido 110 mil hectares de terras por favores do ex-ditador Alfredo Stroessner, segundo denúncia do líder camponês Rosalino Casco.

Só que não são os brasiguaios o principal fator de conflito no campo paraguaio. Junto aos colonos sulistas apareceram grandes latifundiários que, estimulados pela facilidade com que Stroessner presenteava as terras paraguaias, compraram a preços irrisórios enormes extensões de terra na zona de fronteira. Entre eles o maior produtor individual de soja do Paraguai, o brasileiro Tranquilo Favero.

Dono das terras mais caras do país, o “Rei da Soja” sente falta dos tempos de Stroessner. Em entrevista concedida à Folha em 2012, afirmou: “Naquela época você podia dormir com a janela aberta e ninguém te roubava. Só estamos piorando desde então”. Para ele, a ditadura paraguaia sabia como resolver o problema dos sem-terra: “Como mulher de malandro, que só obedece na base do pau”.

COM ITAIPU, UMA NOVA OFENSIVA

Não era apenas Favero que pensava assim. A exportação de colonos e latifundiários brasileiros para o Paraguai foi apenas uma das iniciativas de aproximação entre os governos brasileiro e paraguaio.

Desde o fim da Guerra da Tríplice Aliança, havia uma disputa jurídica sobre o Salto de Sete Quedas, chamado no Paraguai de Salto del Guairá. O aproveitamento hidrelétrico da região era de importância estratégica para o Estado brasileiro. Frente ao impasse, o presidente João Goulart assumiu em 1963 o compromisso de não avançar a fronteira brasileira sem um acordo mútuo entre as partes.

Explosão de rochas nas margens do Rio Paraná (Foto: Gazeta do Povo)

Com o golpe militar, o Exército brasileiro tomou a ofensiva ao enviar em junho de 1965 quatro batalhões de ocupação que tomaram o Salto del Guairá e pôs em xeque a “diplomacia pendular” de Stroessner. Desde o início de seu governo, o ditador buscava reduzir sua dependência frente à Argentina ao ensaiar concessões ao Estado brasileiro, como a construção, em 1962, da Ponte da Amizade.

A postura agressiva da ditadura brasileira levou à assinatura do Tratado de Itaipu (1973) e do Tratado da Amizade e da Cooperação (1975), já no governo de Ernesto Geisel. Muitos dos trabalhadores brasileiros que participaram na construção da usina tornaram-se também fazendeiros no Paraguai.

O desaparecimento das cataratas do Salto del Guairá, engolidas pelo represamento do Rio Paraná, constituíram uma perda irreparável aos indígenas que habitavam os 600 km² de terras férteis sacrificadas durante a construção da represa. Essa história está contada no documentário “Henda’ŷva: Los que no tienen lugar” (Miguel Armoa, 2013).

Além da perda socioambiental, a entidade binacional criada pelo tratado se apresentou em termos extremamente desfavoráveis para os paraguaios. O país foi obrigado a vender sua energia excedente para o Brasil em troca de uma compensação 15 vezes inferior ao custo de produção. Desde a queda de Stroessner, sucessivos governos paraguaios vêm tentando, sem sucesso, renegociar as condições do acordo.