Chaco avança na Argentina e Bolívia; e é a maior região do Paraguai. (Imagem: Reprodução)

Dividido ao meio pelo rio que leva seu nome, o Paraguai tem em sua face Ocidental sua maior região – cerca de 62,5% do território, mas apenas 182 mil habitantes – e a última fronteira de conflitos. Como a Região Ocidental já foi quase toda devastada, cabe ao Chaco (que avança também por Argentina e Bolívia) o papel de reserva ambiental que no Brasil se atribui à Amazônia. Ainda que sejam biomas bem diferentes, as similaridades existem, do desmatamento intensivo e da grilagem de terras às ameaças aos povos indígenas. Entre eles, os Ayoreo.

Os brasileiros são protagonistas diretos dessa invasão. Ao longo de seis reportagens, o eixo Os Invasores do Chaco mostra histórias de violações de direitos sociais e ambientais, como no restante do país, com suas teias políticas nem sempre republicanas e uma lógica econômica predadora, mas com uma característica que reforça o perfil da série De Olho no Paraguai: os brasileiros não estão lá como colonos, como acontece muito na Região Oriental. Apenas como grandes latifundiários, ocupando fartas extensões de terra.

TRINTA E TRÊS BOIS POR HABITANTE

O desmatamento no Chaco ocorre a um ritmo de 200 mil hectares por ano. E a previsão é que isso dobre – para 400 mil hectares – nos próximos dez anos, até que a pecuária ocupe mais 4 milhões de hectares, ou 10% do território paraguaio. Isso pelas previsões do próprio governo, conforme o Plano de Desenvolvimento 2030, que prevê o Paraguai como quinto maior exportador mundial de carne bovina. Em todo o Chaco já são quase 6 milhões de cabeças de boi. Trinta e três para cada habitante. “O Chaco tem 14 milhões de hectares de florestas nativas”, argumentou o vice-ministro da Pecuária, Marcos Medina. “Então ainda ficaríamos com 10 milhões”.

Ministro não se importa em ceder 4 milhões de hectares para a pecuária. (Foto: Alfonso Daniels/Opera Mundi)

É em meio a essa lógica – e esse mercado – que se movimentam pessoas como o brasileiro Nevercindo Bairros Cordeiro, sempre disposto a apresentar as terras a investidores. No Brasil, ele já teve seu endereço descrito como “em lugar incerto e não sabido”, em processos sobre leilão e penhora de lotes urbanos em Ponta Porã (MS). Do outro lado da fronteira, preside a Associação Rural do Paraguai (ARP) no Alto Chaco, a região mais seca, considerada pelo governo paraguaio o epicentro da expansão “sem estrutura” da pecuária.

A ARP recebeu em junho o embaixador brasileiro no Paraguai, Carlos Alberto Simas Magalhães. Coube a Bairros Cordeiro fazer o apelo mais enfático para o envio de pesquisadores da Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), “para potencializar o setor agropecuário paraguaio”. Um setor que ele promove também na Cordeiro Negócios Agropecuários, onde é representante da multinacional estadunidense Dow Agrosciences para a venda de herbicidas.

Cordeiro também representa – em espaços como o Foro Brasil Paraguay – a empresa pecuária BBC S.A., de investidores brasileiros, da qual voltaremos a falar em reportagem específica. Ela é uma das que mais ameaçam o povo Ayoreo Totobiegosode – a última etnia isolada fora da Amazônia na América do Sul – com suas propriedades no departamento de Alto Paraguay, no extremo norte do país. E na fronteira com o Mato Grosso do Sul.

ENTRE TERRAS E AVIÕES

Não é incomum brasileiros terem terras dos dois lados do Rio Paraguai. Vimos isto na primeira reportagem do eixo Fronteiras: “Ex-prefeito de Porto Murtinho, no MS, tem terras dos dois lados do Rio Paraguai“. Também não é incomum que essas incursões estejam repletas de acusações diversas, como vimos neste texto: “Preso, ex-prefeito no MS é acusado de crimes nos dois lados da fronteira“. E não é incomum – como se vê nos exemplos acima – que esses latifundiários tenham tentáculos políticos.

Um deles, Jose Otilio Motta Albuquerque, foi candidato a vereador pelo DEM, em 2004, em Naviraí (MS). Atuante no sindicato rural do município, ele tem uma fazenda em Cotriguaçu (MT), outra em Corumbá (MS) e, no Paraguai, uma propriedade da Estancia Ñu Vera, com 4.066 hectares em Capitán Bado, departamento de Amambay – na Região Oriental. Possui ainda a Ganadera San José del Chaco S.A., na Região Ocidental. Sua empresa alcançou as páginas dos principais jornais paraguaios.

É que ela foi citada em uma história rocambolesca envolvendo um avião que pertencia ao Partido Colorado, sigla do presidente Horacio Cartes e de quase todos os mandatários da história recente do Paraguai. Em 2004, a aeronave foi vendida para o então intendente de Pedro Juan Caballero, no Alto Paraguay: José Carlos Acevedo, irmão do senador Robert Acevedo. Decolou e passou para as mãos de um empresário de Ponta Porã, Carlos Augusto Flores de Oliveira, um dono de posto que já foi investigado por tráfico de drogas no Brasil.

Avião do Partido Colorado passou por empresa de pecuária de um brasileiro. (Imagem: Reprodução)

Dois anos depois, Flores vendeu o avião à Ganadera San José del Chaco, controlada pelo pecuarista Motta Albuquerque, que atua no sindicato rural em Naviraí. Foi de sua empresa que o Cessna C-210 foi parar nas mãos – após passar pela assinatura de um laranja – dos irmãos Sánchez, Denilso e Carlos Rubén, o pecuarista Chicharõ, deputado colorado suplente, processado por lavagem de dinheiro e, como dizia na época o jornal ABC Color, “por se beneficiar do narcotráfico”. No Brasil ele foi condenado por lavagem de dinheiro.

Só que nunca foi extraditado. Ele foi preso em 2016 pela polícia paraguaia, ao visitar na prisão de Capitán Bado outro personagem desta série, o traficante Jardis Chimenes Pavão. Confira a reportagem sobre a relação entre propriedades rurais no Paraguai e o tráfico de drogas por brasileiros: “Latifundiários brasileiros acusados de tráfico têm fazendas no Paraguai“.

A acusação da Justiça contra Chicharõ? Comandar uma emboscada, do lado brasileiro, contra o prefeito eleito de Coronel Sapucaia (MS), Rudi Paetzold (PMDB), e toda sua família, salva pelo veículo blindado. O incidente com vários pistoleiros foi gravado pela filha do prefeito, dias após o pai ser eleito. Chicharõ, porém, ficou somente um dia preso.

QUEM CHEGOU PRIMEIRO?

Flávio Queiroz: troco para delegacia e terras por atacado. (Foto: Reprodução)

Outro político latifundiário, Flávio Queiroz, foi vice-prefeito de Porto Murtinho entre 1996 e 2000. Depois, decidiu investir em terras no Paraguai. Há dois anos, em novembro de 2015, ele foi homenageado do outro lado do rio, em Carmelo Peralta. Um dos critérios dos moradores foi a contribuição dos pecuaristas (brasileiros, argentinos e uruguaios) na construção da delegacia do município, de 360 m². Queiroz recebeu o título de Cidadão Honorário. Mais ao norte ele se apropriou de um território bem maior,  no distrito de Fuerte Olimpo, capital do departamento de Alto Paraguay: 2 mil hectares.

“Muito obrigado a vocês, viva o Paraguay, viva o povo de Carmelo Peralta!”, exclamou o político. “E Viva o Alto Paraguay!” Seis anos antes, sua propriedade em Fuerte Olimpo ameaçou a sobrevivência de 40 famílias que viviam no local havia mais de 30 anos. São camponeses de uma comunidade chamada San Carlos, prejudicada há décadas pela quebra do mercado de tanino e que hoje se dedica à pecuária de pequena escala. Queiroz ofereceu a eles uma contrapartida de 200 hectares – dez vezes menor.

Alguns dos maiores latifundiários brasileiros no Paraguai – conforme lista da Oxfam divulgada no primeiro texto da série De Olho no Paraguai – estão no Chaco. E como ameaças diretas ao povo indígena Ayoreo. Entre eles estão Marcelo Bastos Ferraz, segundo lugar na lista, e Joici Companhoni, terceiro lugar, e os donos da BBC S.A. e River Plate S.A., Gino de Biasi Neto e Spencer de Miranda Carranca. Eles, seus sócios e suas empresas são os temas das próximas reportagens.