Ex-presidente Fernando Lugo assiste à sessão que cassou seu mandato em 2012. (Foto: Rafael Alejandro Urzúa/Agência Pública)

O processo de impeachment do presidente Fernando Lugo, em 2012, foi marcado pela participação do agronegócio. Em um país onde 14% das terras pertencem a proprietários brasileiros, o golpe parlamentar no Paraguai – concretizado em apenas 48 horas – contou com a expressiva participação verde-amarela.

A oposição a Lugo teve início já em 2008, poucos meses após a vitória da Alianza Patriótica para el Cambio (APC) nas eleições. Em 15 de dezembro, entidades patronais – com fazendeiros brasiguaios à frente – convocaram os proprietários de terra a fecharem com seus tratores as principais rodovias da Região Oriental do Paraguai. Pedindo mais diálogo com o governo, a paralisação se dissolveu em apenas dois dias, mas consolidou a tática do “tractorazo”, que se tornaria recorrente nos anos seguintes.

O motivo principal dessa mostra de força era o compromisso assumido pela APC – uma coalizão ampla de centro-esquerda, depois convertida na Frente Guasú – de promover a reforma agrária e regulamentar a Lei de Segurança Fronteiriça, que proibia a posse de terra por estrangeiros até 50 quilômetros de distância da fronteira.

Aprovada em 2005, a Lei nº 2.532 nunca saíra do papel. Na prática, ela ameaçava a posse da terra pelos brasiguaios, imigrantes brasileiros que chegaram no Paraguai no fim dos anos 1960, e seus descendentes, muitos dos quais jamais obtiveram cidadania paraguaia. Mas também feria interesses corporativos muito maiores.

80% dos associados da UNICOOP são brasileiros. (Imagem: Reprodução)

A UNIÃO FAZ A FORÇA

Diferentemente do Brasil, onde o setor agropecuário centraliza grande parte do lobby político nas federações estaduais e na Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), o Paraguai segue um modelo mais pulverizado. A Federação de Cooperativas de Produção (Fecoprod) congrega 32 cooperativas agrícolas que, no total, controlam 2,3 milhões de hectares (uma área equivalente ao Sergipe). Mas há nuances.

Muitas entidades preferem se agrupar por afinidade: as colônias menonitas do Chaco estão agrupadas sob a Acomepa, enquanto os proprietários brasileiros preferem somar forças na Central Nacional de Cooperativas, a Unicoop.

Formada por oito cooperativas distribuídas nos departamentos de Alto Paraná, Canindeyú e Itapúa, a Unicoop concentra 330 mil hectares – quase três vezes mais que Tranquilo Favero, maior sojicultor individual do Paraguai – e alcança uma produção anual de 1,2 milhão de toneladas de grãos, especialmente soja, milho e trigo. Mais de 80% dos associados são brasileiros.

A Unicoop foi além e verticalizou as operações: fundou em 2009 a Unexpa, empresa exportadora com sede em Hernandarias. A Unexpa figura entre os 50 maiores exportadores do Paraguai: US$ 29,4 milhões em 2017.

A empresa tem escritórios em Cascavel e Guarapuava (PR), onde é representada pela brasileira Suzana Janete Ribeiro, onde também é dona na Tradesul Importação e Exportação de Cereais. Os sócios são paraguaios: Raul Sergio Valdez Florentin e Christian Fretes são diretores da Dekalpar, comercializadora de agrotóxicos, sementes transgênicas e, mais recentemente, grãos.

Governador Beto Richa (PSDB-PR) inaugura terminal financiado por cooperativa de brasiguaios. (Foto: Reprodução)

Bancado pela Unicoop, o consórcio entre Unexpa, Dekalpar e outras duas empresas paraguaias investiu R$ 2,3 milhões na ampliação do porto seco de Cascavel, concluída em 2011. O projeto de R$ 4 milhões, cuja inauguração contou com a presença do governador do Paraná, Beto Richa (PSDB), tinha como objetivo incrementar o volume de grãos transportados pela nova Ferroeste – ferrovia que ligará Maracaju, no Mato Grosso do Sul, ao Porto de Paranaguá, usando Cascavel como ponto de transbordo. O escoamento da soja paraguaia via Paranaguá é um sonho antigo, como vimos nesta reportagem: “Além das terras, brasileiros expandem influência na logística”.

A Unicoop não apostava todas suas fichas em um único cavalo: em 2014, Valdez e Fretes foram ao Rio Grande do Sul discutir a criação de um corredor ligando Encarnación, no departamento de Itapúa, ao porto do Rio Grande. Cinco anos antes, em Santa Catarina, fecharam parceria para a troca de grãos paraguaios por fertilizantes.

FEIRAS, MISSÕES E GRILAGEM

Na Cooperativa Naranjito, fundada em 1991, o conselho de administração é majoritariamente brasileiro: o vice-presidente, Sergio Luiz Wolfart, é dono de transportadora em Paulínia (SP). Donato Thomas, um dos pioneiros da cooperativa, era dono de cartório em Arroio do Meio (RS). Outro brasileiro, Luciano Sauer, tesoureiro da Naranjito, explica: desde o início a cooperativa abriu as portas aos brasileiros. E a receita se repete nas outras sete cooperativas que integram a Unicoop.

Nova Ferroeste: Paraguai e Mato Grosso do Sul escoando grãos via Paranaguá. (Imagem: Reprodução)

A Cooperativa Santa Maria, presidida pelo gaúcho Paulo Roberto Gregory, organiza uma das principais feiras agropecuárias do Paraguai, a AgroExpo Coopasam. Ponto de encontro da comunidade brasileira, o evento já teve presenças ilustres como o jornalista e fundador do site Notícias Agrícolas, João Batista Olivi, apresentador da feira em 2016. Outra que é presidida por um brasileiro, a Cooperativa de Produtores de Naranjal (Copronar), esteve no roteiro oficial de missão organizada pela Apex-Brasil.

Em fevereiro de 2018, três dirigentes da Cooperativa Pindó – a segunda maior do Paraguai – foram acusados de grilar terras destinadas à reforma agrária na colônia Maria Auxiliadora, em Caazapá. A área de 4 mil hectares foi comprada pelo governo paraguaio em 1984 e loteada em seguida. Os lotes que deveriam ser distribuídos para camponeses foram alugados por Romeu Holzbach, presidente, Vilmar Lucio Barp, vice-presidente, e Romualdo Zocche, diretor, e repartidos entre parentes.

Em 2013, a Pindó lançou um audacioso projeto para converter o Paraguai em exportador de carne suína.

NO FIO DA NAVALHA

Durante seu governo, Fernando Lugo viveu na corda bamba. De um lado, a pressão de camponeses e movimentos sem-terra, principal base de sustentação da APC, para acelerar a política de reforma agrária e tirar o Paraguai da primeira posição no ranking de desigualdade no acesso à terra. Do outro, o poder econômico das associações e cooperativas de produtores, ameaçando paralisar o país.

Conflitos no campo também foram pretexto para queda de Lugo. (Imagem: Reprodução)

A saída “moderada” adotada pelo presidente paraguaio irritou parte das lideranças sem-terra, que intensificaram as ocupações. Novos acampamentos surgiam às dezenas e tinham como alvo as terras em mãos de brasileiros que, antes mesmo da posse de Lugo, começaram a contratar milícias armadas para proteger suas terras.

Não tardaria até que a situação fugisse ao controle. Em abril de 2011, ocorreu o primeiro grande conflito, nas terras de Tranquilo Favero em Ñacunday. O caso exigiu intervenção direta de Lugo. A proximidade das cooperativas e seus associados da zona de conflito fez muitas delas se somarem à pressão contra o presidente. Em entrevista à Agência Estado, o gerente-geral da Copronar, Sergio Luis Senn, alertou: “A promessa [do governo em resolver o conflito em Ñacunday] tranquilizará na medida em que for efetiva. Se só fala e não faz, não resolve nada”.

Sob o lobby da Fecoprod e da Unión de Gremios de la Producción (UGP), as cooperativas endossaram pedido de destituição do diretor do Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal (Senave), Miguel Lovera. O motivo? Lovera, respaldado pela ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e pelo ministro de Meio Ambiente, Oscar Rivas, havia negado a inscrição da semente de algodão transgênico Bollgard BT, da Monsanto. (O papel no golpe da multinacional, depois comprada pela Bayer, foi ressaltado pelo jornalista Idilio Méndez Grimaldi.)

Novos “tractorazos” foram convocados. E Lugo não resistiu. Em 22 de junho de 2012, sete dias após o massacre de Curuguaty, o Senado paraguaio destituiu, em um processo relâmpago, o presidente eleito. Entre as justificativas: insegurança no campo, xenofobia contra proprietários brasileiros e o estímulo – nunca comprovado – do governo às “invasões” de terra. O resultado foi comemorado por brasiguaios e também por empresários brasileiros com investimentos no campo paraguaio.

Assim como no impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, era o agronegócio e sua representação parlamentar – espalhada por todo o Congresso paraguaio – quem dava as cartas.

A Unicoop voltou a protagonizar tractorazos em 2017, já sob a presidência de Horacio Cartes, contra o aumento no imposto à exportação de grãos não-processados.