As crianças da Escuela Básica nº 6234 estavam na sala de aula quando foram instruídas a sair sem medo. Pouco depois chegaram os 400 policiais nacionais e os 100 membros da tropa de choque, os “cascos azuis”. Era 8h30 de uma terça-feira. A escola foi queimada. Não sobrou nada. Também viraram cinzas os cadernos dos alunos, os livros dos professores, os estojos, a bandeira do Paraguai.
O ataque à comunidade Yva Poty, no distrito de Villa Ygatimí, tornou-se menos conhecido internacionalmente que o massacre de Curuguaty, decisivo para a queda do presidente Fernando Lugo. Ele ocorreu no dia 20 de novembro de 2012, já sob o governo provisório de Federico Franco. Mas compõe um dos casos mais emblemáticos de violência contra povos originários na história recente do Paraguai.
Um das melhores descrições desse massacre simbólico – este texto está, em boa parte, baseado nesse resumo – pode ser vista na página da Direção Geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação do Paraguai, igualmente conhecido como MEC. Entre os signatários do documento estão advogados dessa divisão escolar.
À frente do despejo, no departamento de Canindeyú, perto de Curuguaty, estava um fazendeiro brasileiro, Paulo Ferreira de Souza, conhecido como Paulo Tuneiras. Entre 1997 e 2003 ele foi vice-prefeito de Sete Quedas (MS), cidade vizinha de Paranhos, pelo PFL (hoje DEM). Entre 2003 e 2004, prefeito, com a renúncia do tucano Roberto Alcântara.
Os dois municípios sul-mato-grossenses ficam na fronteira com o Paraguai. Paranhos faz divisa com Villa Ygatimí. Trata-se de uma fronteira seca com o Brasil, uma região disputada pelo crime organizado, dos vários contrabandos – de cigarros, agrotóxicos, armas – ao tráfico de drogas.
POSTO DE SAÚDE FOI DESTRUÍDO
Mais de cem crianças e adolescentes – 122, segundo o MEC paraguaio – moravam na comunidade composta por 186 famílias Awá Guarani, assentadas em uma fazenda de 600 hectares. As casas e as plantações – de mandioca, batata, tomate – foram destruídas por camponeses e jagunços.
O primeiro a cair foi o Posto de Saúde. Com todos os medicamentos. Instrumento utilizado? Motosserra. Só então passaram a destruir a escola, enquanto as crianças corriam – duas delas ficaram perdidas durante um dia. A próxima vítima foi a casa religiosa dos Awá Guarani, chamada de Jeroky Aty. Incendiada. “O líder foi sequestrado e brutalmente torturado por duas horas”, relata o MEC.
Em seguida as 26 casas foram queimadas e derrubadas. Uma de cada vez, com motosserras. “O panorama se mostrava surrealista e desolado”, prossegue o texto divulgado pelo governo paraguaio. Um ancião não queria deixar sua casa e teve de ser resgatado à força – senão seria queimado junto.
Para completar, a água do poço utilizado pelos indígenas foi contaminada, com lixo, inseticidas e agrotóxicos. Animais domésticos desapareceram. Os eletrodomésticos foram inutilizados. A dispensa foi saqueada e depois derrubada pela polícia. Também foram furtadas ferramentas agrícolas e a merenda escolar.
TERRAS SÃO INDÍGENAS
O juiz que autorizou o despejo, Carlos Goiburú bado, foi um dos que tomaram decisões favoráveis aos proprietários – família Riquelme – no caso de Curuguaty. A decisão foi tomada mesmo sendo a comunidade Yva Poty reconhecida desde 1998 como pessoa jurídica – e com o título de terra nas mãos do Instituto Paraguaio do Indígena (Indi).
As informações sobre direitos do proprietário são divergentes. Alguns relatos informam que não foi apresentado nenhum título de propriedade. Outros, que ele apresentou um título – não necessariamente válido – do Indert, o órgão paraguaio equivalente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Segundo o texto na página do MEC, a ordem de despejo foi assinada no caminho, sem direito à defesa e sem notificação prévia, “transgredindo o artigo 16 da Constituição”, que prevê a defesa em juízo. Nem o Indi nem as autoridades de Villa Ygatimi e Curuguaty fizeram algo para conter a destruição.
Um dos líderes da Plataforma de Organizações do Massacre de Curuguaty, Claudio Rolón, disse à Radio Ñanduti que era de conhecimento público que um despejo nos departamentos de Alto Paraná e Canindeyú custava US$ 1.000. “As comunidades indígenas costumam ser atacadas por sojeiros”, afirmou.
Em artigo no Última Hora, “Terror em Yva Poty”, Miguel López escreveu que aquela era uma das poucas comunidades indígenas com um nível de vida “digno, autônomo e progressista”, onde as famílias mantinham suas tradições a partir de uma cosmogonia comunitária: “Não obstante, viam com certa preocupação o avanço da fronteira agrícola dos cultivos mecanizados e devoradores dos cultivos de soja dos colonos brasileiros e proprietários mestiços”.
DE FLAGRA EM DESMATAMENTO…
A região de Canindeyú é uma das poucas da região oriental com matas preservadas. O ABC Color contou em 2011 que propriedades de dois brasileiros eram responsáveis pelas maiores destruições. Uma delas, a de Ulisses Rodrigues Teixeira, personagem de uma das reportagens do eixo Fronteiras, com mil hectares de desmatamento: “Família que desmata no Paraguai desmata no Brasil”.
A outra propriedade era justamente, de Paulo Ferreira de Souza, o Tuneiras, com 700 hectares de matas devastados. Ou melhor, Paulo e Luisão, seu irmão Luís Ferreira de Souza. “Os dois estrangeiros possuem vários imóveis com vastas áreas de mata para expandir cultivos de soja nos distritos de Ypehû e Villa Ygatimí”, contou o jornal. Em 2014, Paulo Tuneiras voltou a aparecer em investigação sobre desmatamento, definido como reincidente.
… AO DISCURSO CONTRA DEMARCAÇÕES
Quatro anos antes, no Brasil, segundo o Campo Grande News, o político foi um dos que tiveram contas bloqueadas em uma denúncia, em 2010, por improbidade administrativa. Membro do Sindicato Rural de Sete Quedas, ele participou em 2013 – um ano depois do ataque aos Awá Guarani no Paraguai – de uma reunião contra demarcações indígenas em seu estado. E com voz ativa:
– Está havendo um esquecimento dos nossos governantes quanto aos nossos direitos, compramos e pagamos nossos impostos. Não podemos permitir que sejamos despejados de dentro de nossas casas. Que país é este que quem trabalha não tem valor? Temos que cuidar para que isso não se torne uma guerra.