Uma das terras do povo Ayoreo Totobiegosode, a Comunidade Cuyabia, está sendo ameaçada por pecuaristas argentinos, alemães e brasileiros. O paranaense Mario João Boff saiu no anos 80 de Foz do Iguaçu (PR), onde foi delegado e político, para investir em propriedades no Paraguai. Ele e o filho Bruno Alberto Boff possuem fazendas de soja que aparecem como “sustentáveis” em publicações sobre ambiente – até mesmo da organização WWF Brasil. No departamento do Boquerón, no extremo norte do país, região Ocidental, declaram uma propriedade de 10 mil hectares – no mesmo município da Comunidade Cuyabia.

Ex-deputado Medeiros presidiu a CPI e escreveu livro. (Imagem: Reprodução)

Bruno Alberto Boff chegou a ser preso temporariamente em Foz do Iguaçu, em 2006, sob a acusação de participar de um esquema internacional de contrabando de cigarros. Seu nome está no relatório final da CPI da Pirataria, relatada pelo deputado Josias Quintal (PSB-RJ) em 2004. Ele tinha uma empresa no Paraguai, a Tabacalera Sudan, em sociedade com os estadunidenses David Li Min Young e Daniel Young Lih Shing, igualmente presos na Operação Bola de Fogo, na época divulgada como combate à “maior rede de contrabando de cigarro” do país. Os irmãos Young também tiveram prisão preventiva decretada pelo juiz Odilon de Oliveira, de Campo Grande.

A empresa dos Young em Cajamar (SP), a Sudamax Indústria e Comércio de Cigarros, tinha sido um dos pivôs da investigação de um esquema que movimentara, em 2002, R$ 46 bilhões e 32,5% dos cigarros consumidos no Brasil. Até a Tabacaria del Este, a empresa Tabesa do presidente paraguaio Horacio Cartes, foi mencionada naquela CPI como uma das principais indústrias que abasteciam o mercado brasileiro. A empresa-espelho da Sudamax no Paraguai era exatamente a Sudan, dos irmãos Young e Bruno Boff.

Em outubro de 2017, a Sudamax foi listada como a 22ª maior devedora entre os inscritos na Dívida Ativa do Estado de São Paulo. Total da dívida? Quase R$ 1 bilhão. Mais precisamente, R$ 959.395.570,51. (A oitava colocada é uma empresa do agronegócio, a Sadia.)

VIZINHO DE SOMOZA

O patriarca Mario João Boff entrou no Paraguai pelo departamento de Caagazú, na região Oriental. Do lado brasileiro da fronteira ele foi delegado nos anos de chumbo e político ligado à Arena, depois PDS – esteve até cotado para ser prefeito biônico de Foz do Iguaçu, ligado que era ao ex-governador – e agropecuarista – Jaime Canet Júnior. Um dos fundadores do jornal Gazeta de Iguaçu, ele se projetou como revendedor exclusivo da Sadia, por meio da Distribuidora de Frios Alvorada, a Difal. No país vizinho, investiu em pecuária. Em 2008, informou à Folha possuir por lá 50 mil hectares.

Mimo entre ditadores: Somoza ganhou fazenda de Stroessner. (Foto: Reprodução)

Parte das terras foi obtida de forma peculiar, durante a ditadura comandada por Alfredo Stroessner (1954-1989). O Instituto de Bienestar Rural (IBR), hoje Indert, distribuiu 7 milhões de hectares – o tamanho da Irlanda – de terras da reforma agrária para políticos, empresários, militares. O ex-ditador nicaraguense Anastacio Somoza (assassinado no próprio Paraguai nos anos 80) foi um dos agraciados, com 8 mi hectares. Outros 4 mil hectares, no mesmo departamento de Guairá, foram parar nas mãos de um conselheiro do IBR, Miguel Angel Ramírez, do Partido Colorado. Depois, para sua mulher, Renée Vilarejo. Depois, para Mario Boff.

A aventura do brasiguaio não foi desprovida de conflitos sociais e ambientais. Um dos fundadores da regional da Asociación Rural del Paraguay no Alto Paraná, ele teve 800 hectares de reserva florestal ocupados por camponeses, em 2012, já em Raúl Arsenio Oviedo, do outro lado da divisa com o departamento de Caagazú. Era uma reivindicação por água. No ano seguinte, segundo o Ministério Público paraguaio, Mario Boff foi condenado a doar 20 milhões de guaranis em alimentos não perecíveis para comunidades indígenas, por delitos contra o meio ambiente. Conversão da moeda, R$ 12.500.

Relatório ambiental não menciona impactos para povos indígenas. (Imagem: Reprodução/Seam)

O filho Bruno Alberto Boff (para além do histórico com tabacarias) teve mais sorte. Produtor de soja, milho, trigo e aveia, ele foi agraciado pela organização ambientalista World Wildlife Fund (WWF) com o selo de “soja responsável“, o RTRS, oferecido para empresas economicamente viáveis que tragam benefícios sociais e sejam ambientalmente corretas. Em 2016, o gerente da Agrosoy S.A. deu entrevista ao site paraguaio da WWF. Apenas a Agrosoy, fundada em 2011 no departamento de Caaguzú, e outras duas empresas possuem essa certificação.

E OS IMPACTOS PARA OS INDÍGENAS?

Os católicos Mario e Bruno Boff são presidente e vice-presidente da Agroganadera Santa Rita S.A., a empresa agropecuária que aposta na pecuária em território Ayoreo, no distrito de Mariscal Estigarribia, departamento de Boquerón, no Chaco. Em maio de 2015 eles entregaram à Secretaria del Ambiente del Paraguay um relatório de impacto ambiental, para a exploração de 10 mil hectares nas fazendas San Isidro e San Rafael. Mais da metade da área está prevista para a produção de gado Nelore e Limousin. O investimento previsto é de US$ 9,57 milhões, sendo US$ 4,5 milhões o preço definido para o latifúndio.

Comunidade Cuyabia aponta desmatamento provocado pela Agropecuária Santa Rita. (Imagem: Reprodução)

Após inúmeros detalhamentos sobre clima, solo, flora, fauna e até sobre o temperamento do gado, os povos indígenas são citados de passagem, após menção ao Parque Nacional Teniente Enciso, a 65 quilômetros, como área protegida mais próxima: “Os nativos que habitam esses biomas são das etnias Ayoreos, Lengua, Chiriguano, Tapiete, Chorotí e Nivaclé. A comunidade mais próxima fica a 30 quilomêtros a noroeste, sendo uma comunidade reassentada recentemente, da etnia Nivaclé”.

Nenhuma etnia é mencionada no trecho sobre impactos. No mesmo ano do relatório para a Seam (o ministério paraguaio do Meio Ambiente), porém, lideranças Ayoreo denunciaram desmatamento na região, inclusive pela Santa Rita. Elas apontaram destruição, com escavadeiras, de blocos de 100 hectares, com abertura de caminhos, colocando em risco a presença dos Ayoreo que vivem isolados – eles são os únicos povos fora da Amazônia, na América do Sul, que vivem dessa forma. A região é uma das últimas remanescentes de florestas no Paraguai.

Estão entre os Cuyabia os únicos indígenas sul-americanos isolados fora da Amazônia. (Foto: Survival)

A Comunidade Cuyabia, uma das últimas com povos isolados, fica a 90 quilômetros do núcleo urbano de Mariscal Estigarribia. As terras foram compradas em 1996 pelo governo paraguaio para os Guarani Ñandeva, depois cedida aos Ayoreo. Um ex-presidente do Instituto Paraguayo del Indígena (Indi) chegou, em 2012, a vender as terras, e por isso foi condenado a seis anos e meio de prisão. Os indígenas denunciam até a presença de paramilitares trabalhando para fazendeiros de outras empresas, como a alemã  Brandenstein Agro Forest Investiment, a Bafi, renomeada para Pacsa S.A.

Os advogados dos Ayoreo alegam títulos superpostos. Entre as empresas que disputam o território estão a Santa Rita (representada pelo advogado Rodrigo Pascottini), a Pacsa, a Cresca, a Auley Investiment S.A e a Inversiones Inmobiliarias Belle Ville S.A. A Constituição do Paraguai prevê que os povos indígenas “têm direito à propriedade comunitária da terra, em extensão e qualidade suficientes para a conservação e o desenvolvimento de suas formas peculiares de vida”. O desmatamento da Comunidade Cuyabia é confirmado por imagens de satélite.

Em vermelho, a área da Comunidade Cuyabia, desmatada. (Imagem: Reprodução)

A expansão dos Boff no Chaco ocorreu a partir de um convênio feito em 2001 com o Fondo Ganadero, um fundo específico de investimentos do governo paraguaio no setor pecuário. Objetivo, expandir o gado Nelore no Alto Chaco. As matrizes saíram de fazenda da família no Alto Paraná. Outro grande criador de Nelore no Paraguai é o ex-presidente Juan Carlos Wasmosy (1993-1998), com sua Goya Agropecuaria. Wasmosy tem terras no Brasil – como veremos em uma das próximas reportagens da série.

NO BRASIL, DISTRIBUIÇÃO DE CARNE

No Brasil, as empresas da família Boff dividem-se entre Mario João Boff, sua mulher Wanda Maggi Barrison Boff, netos e filhos – entre eles Bruno Alberto Boff. A Distribuidora de Frios Alvorada, em Foz do Iguaçu, a Difal, está em nome do casal e da filha Flavia Boff. Fundada em 1965, ela distribui para 46 municípios produtos da marca Sadia, da BRF Foods, agora sem a exclusividade dos primórdios, e da marca Rezende, da JBS.

A Difal faz parte da história de Foz do Iguaçu. (Foto: Divulgação)

Com Bruno, o casal Mario e Wanda possui a Exportadora de Alimentos Missioneira Ltda, fundada em 1989. Flavia Boff também é sócia da empresa La Estrella Participações, aberta em 2012. Todas ficam em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira.

Um dos netos do patriarca, Mario João Boff Neto, é dono em Ciudad del Este da Brumado S.A., que distribui – da região oriental ao Chaco – cervejas Kaiser, Sol e produtos da Sococo (empresa alagoana de um antigo sócio de Paulo Cesar Farias). Neto e Bruno Boff, por sua vez, estão entre os sócios, todos da família Boff, da BAB Holding Ltda. Essa empresa possui a Difrinorte Distribuidora de Alimentos Ltda, em Porto Velho.

Outro antigo sócio de Bruno Boff na Tabacalera Sudan, além dos irmãos Young, Mauricio Rosilho foi sócio dos estadunidenses (de origem chinesa) também no Brasil, em uma incorporadora. Ele também foi um dos presos na operação contra cigarros contrabandeados. Foi absolvido da acusação de formação de quadrilha – o que levou também à absolvição dos irmãos em relação a esse crime específico. Bruno Boff já tinha se livrado das acusações.

Um dos irmãos, David Li Min Young está na lista conhecida como Panama Papers, com documentos de mais de 214 mil empresas em paraísos fiscais, associado à empresa panamenha Detzal Company S.A. No Tocantins, o antigo sócio Rosilho tinha sociedade na empresa agropecuária Cotril Florestal, voltada para a produção de “boi verde”, ambientalmente correto, para exportação.