Casa destruída por policiais em Guahory: apenas São Jorge foi poupado (Foto: Reprodução)

Após o massacre de Curuguaty, em 2012, o Paraguai testemunhou uma explosão de conflitos fundiários. Desde a posse de Horacio Cartes (2013-2018), a interferência do Estado paraguaio se deu, em regra, em favor de proprietários brasileiros, a quem o então presidente convidou, em frase célebre: “usem e abusem do Paraguai“. O caso da Colônia Guahory é ilustrativo desse favorecimento.

Desde 2015, as 250 famílias que vivem no assentamento resistem a sucessivas – e violentas – reintegrações de posse realizadas pela polícia a mando de fazendeiros brasileiros, que disputam a titularidade das terras. Localizada em Tembiaporá, no departamento de Caaguazú, Guahory é um assentamento de reforma agrária criado em 1985 pelo Instituto de Bienestar Rural (predecessor do Indert, Instituto Nacional de Desarrollo Rural y de la Tierra) a partir da divisão de uma área de 2.400 hectares em 300 lotes individuais.

Diferentemente de outros departamentos com grande incidência de brasileiros, Caaguazú não está na região de fronteira com o Brasil. Foi sendo gradualmente ocupada pelos brasiguaios conforme as terras em Canindeyú e Alto Paraná, com os quais faz divisa, foram se tornando mais valorizadas. Hoje, 32,1% dos títulos de terra em Caaguazú estão em mãos brasileiras.

O conflito entre os camponeses de Guahory e os “sojeiros” brasileiros teve início em 2014, quando começaram a surgir títulos de terra reivindicando a propriedade de parte dos 1.200 hectares vinculados ao assentamento. De uma amostra de 102 títulos analisados pelo Indert, 25 eram irregulares. Com anomalias graves: de documentos sem assinatura até registros realizados após a restrição, em 2007, da outorga de terras públicas a estrangeiros.

Julian Armando Días Solis dirigiu esquema de outorga de terras a brasileiros. (Foto: Reprodução/Telefuturo)

Segundo a Base Investigaciones Sociales, essa sobreposição de títulos é fruto da corrupção de agentes estatais, que se aproveitam da especulação imobiliária na Região Oriental, zona de expansão da soja, para regularizar e depois revender lotes de reforma agrária, jogando-os no mercado privado de terras. É o caso de Julián Armando Díaz Solís, funcionário do Indert, que titulou uma área total de 100 hectares em nome de parentes para depois transferi-los a Jair Weber, o principal porta-voz dos brasiguaios no conflito contra os assentados em Guahory.

Essa prática gera uma verdadeira confusão cartorária, onde se misturam uma maioria de colonos paraguaios – muitos deles aguardando há 30 anos a regularização de suas terras – com os brasiguaios que adquiriram os lotes irregulares, com ou sem conhecimento, ou mesmo alguns poucos cidadãos brasileiros que participaram inicialmente do processo de reforma agrária, enquanto a prática era permitida.

TERRORISMO DE ESTADO

O primeiro ataque à comunidade ocorreu em 12 de fevereiro de 2015. Acatando o pedido de um sojicultor, os promotores Alfredo Mieres e Alfirio González, do distrito vizinho de Raul Arsenio Oviedo, ordenaram a expulsão das 250 famílias camponesas que viviam na Colônia Guahory. A ordem foi cumprida por um destacamento de 400 policiais, que destruiu casas, máquinas e plantações. A operação foi acompanhada por fazendeiros brasileiros, que emprestaram seus tratores para derrubar as casas.

A expulsão não foi o bastante: 150 pessoas foram imputadas criminalmente por “invasão de imóvel alheio”. A criminalização da luta camponesa não é novidade no Paraguai. Somente entre 2013 e 2015, a Base-IS contabilizou 43 casos de judicialização em conflitos agrários, onde 460 camponeses foram processados e 39 condenados.

Não se dando por vencidas, as famílias reocuparam as próprias terras. Em 15 de setembro de 2016, nova ordem judicial e mais uma expulsão. Dessa vez, empregando 1.200 agentes da Polícia Nacional. Nos meses seguintes, para evitar que as famílias – agora acampadas nas bordas do assentamento – voltassem às suas terras, foram montados três postos policiais 24 horas. Um deles, em frente da escola básica Buen Jesús, causou a suspensão das aulas. O motivo? Com medo dos policiais, as crianças não iam mais à escola.

A desastrosa ação policial causou furor na opinião pública. Até então desconhecida, a Colônia Guahory passou a ilustrar diariamente a capa dos principais jornais do país. Sob pressão, o governo despachou o vice-presidente para tentar mediar o conflito, mas defendeu a atuação da polícia. Durante a expulsão, um dos colonos brasileiros gravou um vídeo onde justificou: “Cartes nos deu luz verde para fazer essa limpeza”.

GOVERNO À FAVOR DOS BRASIGUAIOS

Conflito em Guahory se tornou um símbolo. (Foto: Reprodução)

Em maio de 2017, Cartes vetou projeto de lei que declarava de interesse público 924 hectares em Guahory, que seriam expropriados em favor do Indert. Por 37 votos a 4, o veto foi mantido pela Câmara dos Deputados. A oposição, que abandonou o plenário em protesto, acusou o governo de “strossnear” o Paraguai. O neologismo se refere à prática, continuamente usada pelo ditador Alfredo Stroessner, de privilegiar proprietários brasileiros em detrimento dos camponeses paraguaios.

No entanto, a lua de mel com os brasiguaios durou pouco: dois meses depois, grêmios patronais encabeçaram um tractorazo contra o aumento no imposto à exportação de grãos não processados. O protesto contou com adesão massiva de fazendeiros brasileiros.

Enquanto isso, em Guahory, a tensão aumentava. Duas semanas antes do veto oficial de Cartes, cerca de vinte famílias se reuniram na escola local para tentar impedir um plantio de milho e foram atacadas com bombas de gás lacrimogêneo por agentes do Grupo Especializado de Operaciones, unidade de elite da polícia paraguaia. Os camponeses revidaram e o embate terminou com oito feridos. Em junho, outro ataque com tratores destruiu casas, ainda precárias, que haviam sido erguidas graças a doações e ao apoio de voluntários.

Incapaz de resolver o nó górdio criado em Guahory, que valeu uma denúncia formal ante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Indert ofereceu assentar os camponeses em Yhú, a 30 quilômetros da Colônia Guahory, também em Caaguazú. Das 120 famílias que ainda persistiam no assentamento, apenas 27 aceitaram a proposta. Segundo lideranças, as terras oferecidas pelo governo apresentavam péssima condição.

Em janeiro de 2017, camponeses acusaram o sojicultor Jair Weber, nascido no Paraguai e filho de brasileiros, de ordenar a tortura de quatro mulheres e oito homens. Segundo Luciana Rodríguez, uma das vítimas, policiais levaram os camponeses à casa de Weber. Após o espancamento, o pai de Jair teria felicitado os policiais pelo “bom trabalho”.

PARAGUAIOS, ‘MAS COM DEFEITO’

Durante a série De Olho no Paraguai mostramos recorrentemente a distinção entre o capital brasileiro, grandes empresas e proprietários que compram terras no Paraguai, mas seguem controlando seus negócios do Brasil, e os chamados brasiguaios, colonos oriundos do Sul do Brasil que migraram em busca de terras baratas e prosperaram no país vizinho. Duas metades de uma mesma invasão territorial.

Imagem recorrente: policiais em defesa dos brasileiros. (Foto: Reprodução)

Ao contrário dos investidores e especuladores, os colonos brasiguaios vivem no Paraguai. Mais que isso: asseguram que são paraguaios, “mas com o defeito de serem descendentes de brasileiros”. E, por estarem na zona de conflito, estão sujeitos à reação de um campesinato revoltado com as injustiças sofridas.

Os dois despejos consecutivos e a vigilância policial levaram os camponeses de Guahory a mudar de estratégia. Apoiados pela Federación Nacional Campesina (FNC), passaram a impedir o plantio e colheita dos colonos brasiguaios, em vez de tentar retomar as terras diretamente. A nova tática, que repercutiu negativamente na mídia paraguaia, resultou em mais confrontos.

Em outubro de 2016, Jair Weber elevou o tom em entrevista ao jornal ADN: “Nós, agricultores, nos reunimos ontem e agora iremos com muita gente e vamos nos defender. Aqui vai ter morte, isso eu te asseguro, porque nós não abandonaremos nossas terras”. Dias antes, seu tratorista Vilmar Makus sofreu ferimentos leves ao ser atacado enquanto se preparava para iniciar o plantio de soja.

Não houve morte. Mas a guerra pela Colônia Guahory parece estar longe do fim. Em junho de 2018, após camponeses voltarem a erguer casas na área em disputa, a Justiça paraguaia expediu uma ordem judicial destacando 500 policiais para proteger a preparação do solo nas terras de proprietários brasileiros.

SEGURANÇAS DESPEJAM INDÍGENAS

A 250 quilômetros de Guahory, no departamento de Canindeyú, outro conflito envolvendo brasileiros mobilizou um forte aparato de segurança. Em vez de policiais, foram empregadas forças paramilitares.

Comunidade Awá Guarani atacada por guardas privados da Laguna S.A. (Foto: Conapi)

O caso aconteceu no distrito de Corpus Christi, fronteira seca com Sete Quedas (MS). Ali está a Laguna S.A., empresa de capital brasileiro dona de 4.462 hectares, pertencente a Manfred Tadeu Peters e Detlef Andreas Manfred Peters. De São Paulo, Detlef administra os negócios por telefone. O nome vem da Laguna San Antonio, local sagrado da etnia Awá Guarani, cuja comunidade Y’apo – composta por 80 famílias – já se encontrava na área quando a fazenda foi comprada.

Em maio de 2014, o representante legal da Laguna S.A., David Morandini Benítez, entrou na Justiça de Salto del Guairá, distrito vizinho (na fronteira com Guaíra, no Paraná), com um pedido de “interdição de posse e obra nova”, uma figura jurídica que retém temporariamente uma propriedade em litígio para deter a construção de edificações nessa área. Baseada nesse pedido, a juíza Silvia Cuevas ordenou a reintegração de posse, cumprida por 300 policiais.

Os indígenas, aterrorizados, se refugiaram na floresta que rodeia a comunidade. Suas casas, pertences pessoais e a jerokyhá – casa de reza – foram queimados. Frente à resistência dos indígenas em sair de suas terras, a Laguna S.A. orquestrou uma nova incursão em junho. Mas dessa vez não eram agentes estatais. Os irmãos Peters contrataram a empresa de segurança privada Leo S.A. que, segundo depoimentos, empregava policiais e militares licenciados.

Sem autorização judicial e sem permissão para porte de armas de fogo, os guardas da Leo S.A. invadiram Y’apo e novamente expulsaram a comunidade. Oito indígenas foram feridos na ação ilegal.

Detlef Andreas Peters é pecuarista em Paraibuna (SP). Em 2015, foi apelado pela Justiça do Estado de São Paulo em processo sobre área de preservação permanente. Manfred Peters é dono de fazenda em Sete Quedas, onde cria cavalos quarto de milha.