Político e pecuarista no Mato Grosso do Sul, Nelson Cintra Ribeiro comprou 34 mil hectares de terra no departamento de Alto Paraguay, em 1997. A informação saiu no jornal The New York Times, em 2012, em reportagem sobre desmatamento no Chaco. Ele contou que ele e o irmão estiveram entre os primeiros a ocupar a região. Na época Cintra era prefeito de Porto Murtinho, na divisa com o distrito de Carmelo Peralta. Onde também possui fazendas. Apenas o Rio Paraguai separa os dois municípios.
Por essa coincidência geográfica, o político – citado nas delações da JBS e envolvido em diversos escândalos na administração pública de seu estado – ilustra o início do segundo eixo da série De Olho no Paraguai, intitulado Fronteiras. Ele trata da divisão administrativa, mas também das fronteiras agropecuárias, do processo de expansão dos agropecuaristas brasileiros para o Paraguai. O Chaco também terá um item específico. A Política, idem. Cintra sintetiza vários itens em um só.
Cintra ganhou as páginas dos jornais sul-mato-grossenses nesta segunda-feira (13/11), após deixar um cargo no governo Reinaldo Azambuja, membro de seu partido (PSDB). Acusação? Assédio sexual. Uma servidora estadual, a jornalista Nilmara Calamarac, fez a denúncia no ano passado, quando o político era diretor-presidente da Fundação de Turismo de Mato Grosso do Sul (Fundtur). Até a semana passada ele era coordenador de Articulação com os Municípios, na Secretaria de Governo e Gestão Estratégica.
‘MUNDO TEM BOCAS PARA ALIMENTAR’
Um relatório de impacto ambiental do governo paraguaio, referente a uma propriedade vizinha, pertencente à empresa Cuarzo S.A., mostra que Nelson Cintra manteve suas terras no Chaco Paraguaio ao longo das últimas décadas. Elas ficam no distrito (o equivalente a município) de Carmelo Peralta, na fronteira com Porto Murtinho. Trata-se de uma região inundável, considerada pelos paraguaios uma área de transição entre o Pantanal e o Chaco.
A região do Alto Paraguay é uma das que teve maior aumento de desmatamento nos últimos anos. O que, para Cintra, não é bem um problema. “Os ambientalistas reclamam do desflorestamento”, disse Cintra ao New York Times, há cinco anos, “mas o mundo tem bilhões de bocas para alimentar”. “Existem hoje 1 milhão de cabeças de gado em Alto Paraguay, enquanto 15 anos atrás eram apenas 50 mil”.
Na declaração de bens à Justiça Eleitoral, em 2008, o político possuía R$ 5,5 milhões. O bem de maior valor (R$ 2 milhões) era a fazenda Lucia, em Porto Murtinho, no Km 50 da Rodovia BR-267. Com nada menos que 7.208 hectares. Ele declarou possuir outras quatro fazendas – uma em outro município, Caracol – que somavam outros 15.157 hectares. Total das propriedades do político? 22.635 hectares. Isso no lado brasileiro.
Somadas as propriedades nos dois países, o político possui mais de 55 mil hectares.
Como prefeito de Porto Murtinho, em 2007, Cintra se reuniu com a então ministra do Turismo do Paraguai. Sua proposta era a de criação de uma rota de Assunção a Bonito (MS), passando por Porto Murtinho. Ele queria estimular o “turismo contemplativo”. Como descreveu um jornal regional na época, ele citou entre os atrativos “fazendas que estão se preparando para se tornarem um receptivo para brasileiros e estrangeiros”.
Em 2009, Cintra foi ao Paraguai com a atual deputada federal Tereza Cristina (PSB-MS), na época secretária de Produção e Turismo de Mato Grosso do Sul, para se encontrarem com ministros e autoridades sanitárias, “visando abertura da comercialização do gado da região do Alto Paraguay para ser abatido, no lado brasileiro, em Porto Murtinho, no Frigorífico Marfrig”.
POLÍTICO ESTÁ NA DELAÇÃO DA JBS
Nelson Cintra foi citado pelos donos da JBS em delação premiada, ao lado de outros integrantes do governo de Reinaldo Azambuja. Ele seria uma das dezenas de “laranjas” que emitiram notas frias para sustentar o pagamento de propinas pela J&F, a controladora da empresa. O esquema teria ocorrido nas gestões de três governadores: Zeca do PT (1999/2006), André Puccinelli, do PMDB (2007/2014) e o de Azambuja (desde 2015). O valor total das propinas seria de R$ 150 milhões.
O político disse a um jornal do Mato Grosso do Sul que vai exigir reparação por danos morais. Ele garante que a nota fiscal emitida é verdadeira, e não fria, como disseram os delatores. “É um absurdo a declaração de dono da JBS de que a nota que emiti sobre venda de gado para abate seria ‘fria’, se o próprio frigorífico emitiu a Nota de Entrada comprovando o recebimento de gado para abate”, afirmou ele.
Ele disse que todo o gado vendido à empresa, 136 novilhos, saiu da Fazenda Santa Lúcia – apenas Lucia, em sua declaração de bens – com GTA e nota fiscal de venda. E que depois isso foi comprovado com uma Nota Fiscal de Entrada. Além das Guias de Trânsito Animal (GTA) emitidas pela Agência Estadual de Defesa Animal e Vegetal.
Segundo o pecuarista, ele vende gado para abate desde o fim da década de 1990. “Realizei uma venda normal, como faço há anos, agora é preciso investigar qual foi a intenção da JBS em divulgar uma mentira dessa”. O valor que aparece em seu nome, conforme a delação da JBS, é de R$ 297 mil.
PONTE UNIRÁ AS DUAS CIDADES
A construção de uma ponte entre Porto Murtinho e Carmelo Peralta foi um dos temas de conversa entre os presidentes Michel Temer e Horacio Cartes, em agosto. O objetivo é escoar os produtos agropecuários do Centro-Oeste brasileiro e do Norte do Paraguai até os portos chilenos. “Hoje, dezenas de empresas brasileiras encontram no país vizinho um ambiente de negócio extremamente favorável para seus investimentos”, declarou Temer.
A ponte deve custar R$ 60 milhões para o governo brasileiro. O acordo foi assinado em julho de 2016 e prevê a entrega do projeto até 2021. A rota mais estudada, segundo o jornal Campo Grande News, seguirá de Carmelo Peralta até Mariscal Félix Estigarriba, passando pelo norte da Argentina, rumo aos portos de Iquique e Antofagasta, no Chile.
Nelson Cintra será um beneficiário direto de toda essa logística. Uma lista de estabelecimentos agropecuários habilitados a exportar carne bovina para o Chile, divulgada em 2015 pelo governo paraguaio, inclui seu nome como proprietário em outro distrito do Alto Paraguay, a capital Fuerte Olimpo, onde fica a comunidade de Toro Pampa. A propriedade se chama Oroite.
POLÍTICO TEM CONDENAÇÕES
Em 2008, em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral, o pecuarista não declarou nenhuma propriedade rural no Paraguai – embora ele tenha contado ao New York Times que possui as fazendas em Carmelo Peralta desde 1997.
O político também foi condenado pelo Tribunal de Contas Estadual (TCE) por ter cometido irregularidades como prefeito de Porto Murtinho. Ele teve de devolver mais de R$ 1,3 milhão ao erário devido a irregularidades em licitações. Uma delas, para compra de materiais de construção. Nas eleições de 2016, Cintra estava inelegível por decisão do juiz eleitoral de Porto Murtinho.