Palavras guarani dão nome às propriedades de Marcelo Bastos Ferraz no Paraguai e no Brasil. A empresa Yaguareté Porã avança no Chaco em território de indígenas isolados, os Ayoreo. No Mato Grosso do Sul, ele arrenda a Fazenda Kurupay para empresa de George Soros. E fica por aí a conexão “raiz” do fazendeiro. Sua família – com o centenário Jacintho Honório da Silva Filho à frente – está diretamente envolvida em um dos principais conflitos no Mato Grosso do Sul, o da Fazenda Brasília do Sul, onde, em 2003, foi assassinado o cacique Marcos Veron.
Homenageado em música por Gilberto Gil, Jacintho vive uma dolce vita em São Paulo, ao lado da mulher e próximo das filhas – estas também beneficiárias das propriedades disputadas pelos Guarani Kaiowá. Todos são figurinhas fáceis nas colunas sociais de São Paulo, com festas sucessivas nos Jardins. Enquanto isso, no Mato Grosso do Sul e no Paraguai, os indígenas perdem território. Ou mesmo as próprias vidas.
De Olho nos Ruralistas conta, em Invasores do Chaco, seis histórias de domínio brasileiro na maior região do Paraguai. Bastos Ferraz e outros brasileiros possuem centenas de milhares de hectares no Alto Paraguai e em outros departamentos. A história dele é a principal desse eixo – e uma das mais ilustrativas dos conflitos sociais e ambientais (dos dois lados da fronteira) que compõem a série De Olho no Paraguai.
LATIFÚNDIO X POVOS ISOLADOS
Arístides Ortiz conta, na publicação “El remate de las tierras chaqueñas”, que os brasileiros começaram a investir em terras no Chaco – região Ocidental – por causa do aumento do preço das terras na região Oriental do Paraguai. Conhecendo muito a região? Não. Pela internet, como observou o pesquisador. Com efetivação da compra a partir de São Paulo, Brasil. “Com este simples procedimento virtual foram vendidos, nos últimos 20 anos, milhões de hectares no Chaco”. Tudo isso sem nenhum imposto adicional para estrangeiros.
Nada menos que 300 mil hectares no Alto Paraguai, segundo Ortiz, foram parar nas mãos de Ferraz, “o barão da carne”. No caso da Yaguareté Porã, oficialmente, são 79 mil hectares. Em 2014, a empresa desmatou 1,2 mil hectares em apenas três semanas no Chaco, em pleno território dos Ayoreo Totobiegosoe. Tudo isso mesmo após suspensão de uma licença ambiental, renovada em 2013 durante o governo de Horacio Cartes.
Ao conseguir a primeira licença, em 2007, a empresa omitiu, no Relatório de Impacto Ambiental, o “detalhe” de que em meio às terras ficava uma comunidade de isolados, os Ayoreo. Por isso, informou a agência Efe, a licença foi suspensa em 2008, após funcionários da Secretaria del Ambiente (Seam) serem impedidos de entrar na propriedade. Os Ayoreo reivindicam a demarcação de seu território desde 1993, quando começaram a ser expulsos por madeireiros e pecuaristas.
A Yaguareté Porá recebeu da Survival o Prêmio 2010 de Melhor Lavagem de Imagem Ecológica, por “disfarçar de forma sistemática a destruição de grande parte da floresta dos indígenas como se fosse um nobre gesto de conservação”. A empresa alegou que transformaria a área – dos Ayoreo – em uma reserva natural. Mas dos 78.549 hectares declarados no território somente 16.784 hectares se tornariam reserva. O restante viraria pasto.
DOS ACAMPAMENTOS AOS JARDINS
Marcelo Bastos Ferraz é casado com Cacilda Morais Jacintho Ferraz. Ela pertence a uma família da velha aristocracia paulistana, capitaneada por Jacintho Honório da Silva Filho, de 101 anos. Ele é um dos réus em julgamento do homicídio do cacique Marcos Veron, em 2003, em Juti (MS), numa das áreas reivindicadas pelo povo Guarani Kaiowá. Esse assassinato é um dos casos mais emblemáticos do conflito entre fazendeiros e indígenas no Mato Grosso do Sul – um dos maiores da América Latina.
Quase 15 anos depois, em 2018, o julgamento ainda se arrasta na Justiça. Cacilda e Jacintho Honório da Silva Neto alegam, em ação contra a demarcação das terras indígenas pela União, que a Fazenda Brasília do Sul – onde Veron foi executado após ser agredido com pontapés, socos e coronhadas, aos 72 anos – nunca incidiu em terras indígenas.
Em janeiro de 2016 a Comissão de Direitos Humanos da Câmara esteve no local, após denúncias de novas ameaças feitas por homens armados. No mesmo ano, em outubro, a família comemorou os 100 anos do patriarca Jacintho Honório com festa black-tie em São Paulo. Com presença do “conde” Chiquinho Scarpa e do ex-ministro Nelson Jobim. Também em 2016, em agosto, a filha de Bastos Ferraz e Cacilda, Manuela, teve um casamento luxuoso no Hotel Fasano Boa Vista, em Porto Feliz (SP).
Em maio daquele ano “os jardins tremeram” no aniversário de Wanda Jacintho, a mulher de Jacinto Honório, com a presença de celebridades como Flora Gil. A presença de Gilberto Gil era esperada. Ele acabou não indo. Antes, porém, compôs e cantou um samba em homenagem ao centenário fazendeiro, que pode ser visto aqui e na página do Facebook do compositor. “Jacintho, já sinto certa inveja de você, cem anos não é para qualquer um viver”, cantou Gil.
DE GILBERTO GIL A TEMER
O casal Jacintho e Wanda é conhecido pelas badalações em seu “château” (o nome remete às residências rurais dos nobres) no Jardim Europa. Em uma delas, em 2010, era possível ver membros das famílias Safra e Setúbal, dois entre os principais banqueiros do Brasil. A primeira-dama paulista, Lu Alckmin, já comeu feijoada por lá. Em Juti, no Mato Grosso do Sul, realidade muito distinta: a família move ação contra a construção de escola para os indígenas na Fazenda Brasília do Sul, que eles consideram área particular.
Uma nota em coluna da revista Época, publicada em 2010, ilustra a fluidez das conexões políticas do patriarca, ao posar para uma foto com um deputado federal – hoje preso por corrupção – e o então vice-presidente da República. “Paulo Maluf, Jacintho Onório da Silva e Michel Temer costuram política no Jardim Europa”. (A versão online da revista não disponibiliza a imagem com Maluf, Jacintho e o presidente Temer.)
Enquanto isso, no Mato Grosso do Sul, um edital de intimação na 1ª Vara de Caarapó informava em 2014 que Cacilda Ferraz, Marcia Jacintho Goulart e Monica Jacintho de Biasi – filhas de Jacintho Honório – encontravam-se “em local incerto e não sabido”. Isto por conta de uma liminar concedida contra o patriarca, a partir de uma ação civil pública, que impôs aos proprietários “a obrigação de não realizarem desmates” e de “não permitirem a entrada e a presença de gado nas Áreas de Preservação Permanente”. Tudo isso na Fazenda Brasília do Sul – aquela onde morreu Veron.
A pecuarista Cacilda Ferraz também é dona da Estância Caranday, em Corumbá (no Pantanal sul-mato-grossense). Ali fica um dos endereços da Serraria Buriti Ltda, uma empresa que também tem filiais em Terenos (MS) e Porto Murtinho (MS), com sede e filiais em Miranda (MS). Pertencente a José Vieira de Queiroz e David Kiviathosik, a Buriti já foi investigada, em 2005, por transporte de carvão vegetal sem autorização. Em 2017, Cacilda pediu ao Imasul autorização para corte de árvores na Estância Caranday, em uma área entre 100 e 500 hectares.
A USINA DE GEORGE SOROS
Um dos mecenas do Teatro Cultura Artística, em São Paulo, Marcelo Bastos Ferraz aparece pouco nas festas de família. Mas aparece. Aos 68 anos, ele oscila também entre Campo Grande e o Paraguai. Com pelo menos duas empresas registradas no Reino Unido, no nome dele e de Nelson Laerte Ferreira de Lima. Elas se chamam Knightsbridge Worldwide e Mayfair Worldwide, ambas no mesmo endereço, no centro de Londres. Foram criadas em 2010, após o início das atividades no Paraguai.
No Alto Paraguai, Ferraz e Lima são sócios da Estancia La Amistad. Em Campo Grande, de uma empresa chamada Kurupay Intermediação de Negócios Agropecuários. É o mesmo nome guarani de uma fazenda em Angélica (MS) arrendada para a Angélica Agroenergia, a usina de etanol do grupo Adecoagro, controlado pelo megainvestidor internacional George Soros. (O nome de Ferraz aparece como parceiro da Angélica em documento sobre empréstimo do Deutsche Bank.)
Curiosamente, a gigante do land grabbing internacional informa possuir 269 mil hectares na Argentina, Brasil e Uruguai. O desconhecido Ferraz teria mais que isso no Paraguai. Em Angélica, a Adecoagro plantou 39 mil hectares de cana de açúcar, com investimento inicial de R$ 151 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2008, ganhou uma multa de R$ 1 milhão por poluir nascente – na Fazenda Kurupay – com resíduo de cana.