Invisibilizado por séculos, o Chaco paraguaio tornou-se notícia em abril de 2011: imagens de satélite veiculadas pela Survival International flagraram a destruição de 4 mil hectares de floresta em uma área habitada por indígenas isolados da etnia Ayoreo. Os responsáveis? Duas empresas de capital brasileiro, River Plate S.A. e BBC S.A., pertencentes aos sócios Herbert Spencer Miranda Carranca e Gino de Biasi Neto. Ambos são pecuaristas do Oeste paulista.
As denúncias não eram recentes. Desde 2002, a organização Gente, Ambiente y Territorio (GAT) relatava violações de direitos humanos sofridas pelos indígenas, causadas pelo desmatamento iniciado pelos proprietários brasileiros na região. Em 2012, uma investigação do Instituto Paraguaio do Indígena (Indi) encontrou sinais claros da presença de indígenas isolados na área ocupada pela River Plate.
Existem cerca de 60 mil indígenas no Chaco paraguaio, segundo as estatísticas oficiais. Principal etnia da região, os Ayoreo possuem vários subgrupos, dentre os quais os totobiegosode, considerados a última tribo de indígenas isolados na América do Sul fora da Amazônia. Caçadores e silvicultores, os Ayoreo Totobiegosode têm sido progressivamente expulsos de suas terras desde a ditadura Stroessner.
Com a chegada de fazendeiros brasileiros a situação se tornou mais dramática. Em fuga e com poucas alternativas de sobrevivência longe de suas terras tradicionais, muitos Ayoreo têm buscado refúgio na beira da Rodovia Transchaco ou migrado para cidades onde se tornam mão-de-obra barata para colonos menonitas.
O representante legal das empresas, Celso Mujica, alega que os 4 mil hectares desmatados foram cortados com autorização do Instituto Florestal Nacional do Paraguai. Sobre o conflito com os Ayoreo, minimiza e diz que se trata de uma questão financeira: “Querem dinheiro, mas não vamos dar”.
DE USUCAPIÃO À VIOLÊNCIA
Em 21 de dezembro de 2001, a camponesa Estanislaa Rosalba Trinidad Martínez iniciou um processo por usucapião de uma área de 23.715 hectares. Ela alegava que a posse da gleba era exercida por seu pai, Pedro Trinidad, desde 1955. Essa área na colônia Carmelo Peralta, departamento de Alto Paraguay, fazia parte da finca 384, correspondente a uma área de 90.159 hectares, cujo título estava registrado em nome de Juan Falabella e José Matiauda.
Pouco mais de um mês após o início do processo as terras foram fracionadas e vendidas a Herbert Spencer Miranda Carranca e Gino de Biasi Neto. Segundo o advogado de Rosalba Trinidad, Reinaldo Angel Echagüe, no momento da compra, os brasileiros sequer possuíam a documentação necessária para efetuar a transação.
Mais: tendo adquirido terras sob litígio, eles deram início a uma longa batalha judicial contra Rosalba Trinidad. Uma batalha não apenas jurídica, segundo os representantes da camponesa, que denunciaram ameaças à família e roubo de animais a mando dos empresários brasileiros.
Enquanto isso, Carranca e De Biasi formavam as empresas que passariam a exercer o controle das terras. Constituídas em 2003, a BBC S.A. e a River Plate S.A. possuíam, respectivamente, 10.139 e 20.644 hectares. O diretor titular dessas empresas, o pecuarista Nevercindo Bairros Cordeiro, é acusado de grilar terras pertencentes ao povo Ayoreo.
NO BRASIL, PECUÁRIA E USINA
Em 2007, uma decisão expedida na segunda instância pela juíza María Petrona De Giacomi ordenou o confisco de 23.715 hectares em posse das empresas BBC SA e da River Plate SA, em favor da camponesa Rosalba Trinidad.
Seguiu-se um bombardeio midiático encabeçado pelo principal jornal paraguaio, ABC Color, acusando o ministro da Corte Suprema de Justicia, Miguel Óscar Bajac, de ser o verdadeiro beneficiário das terras. Rosalba Trinidad, segundo o jornal, seria uma ex-empregada doméstica do ministro, que teria interferido no caso para beneficiá-la. O ministro negou as acusações, alegando ter havido uma confusão de nomes.
A pressão sobre a Corte Suprema em defesa dos empresários brasileiros aumentou e levou ao arquivamento do caso após ser acatada uma ação de inconstitucionalidade movida pelos pecuaristas brasileiros.
Gino de Biasi Neto pertence a uma família tradicional do Oeste paulista. Em sociedade com outros De Biasi, ele é dono de empresas de pecuária bovina em Novo Horizonte e São José do Rio Preto. A maior delas, G.B.F. Agropecuaria Ltda, possui um capital social de R$ 40,5 milhões. Através da Usina São José da Estiva, o Grupo De Biasi também investe no setor sucroalcooleiro, com produção diária de 1.100 litros de etanol e 30 mil sacas de açúcar.
Gino de Biasi Neto é membro ativo da Sociedade Rural Brasileira, sendo suplente do conselho que, em 2019, comemorará o centenário da entidade localizada Rua Formosa, no centro de São Paulo – alguns andares acima da Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Em 2008, ele participou no Jardim Europa, em São Paulo, de um jantar em homenagem a Philippe Nicolaÿ, conhecido como Barão de Rothschild, um braço francês – com residência no Morumbi – do clã de banqueiros alemães. A família Rothschild, por sua vez, também atua na compra de terras no Brasil. A RIT Capital Partners, fundo de investimentos fundado pelo Lorde Jacob Rothschild, é dona da Genagro (ex-Agrifirma) que controla 60 mil hectares no Oeste da Bahia.
Mais recentemente, a família De Biasi tem expandido sua atuação no Arco do Desmatamento. De Biasi é sócio também na GBF Madeiras Comércio e Exportação Ltda, produtora de teca – com 3,5 mil hectares plantados – instalada em Cumaru do Norte, no sudeste do Pará. A empresa teve sua licença de operação renovada em 2016. A GBF também produz eucalipto em Goiás.
Como já tem se tornado costume na série De Olho no Paraguai, a teia de influências passa pelo futebol. Roberto e Jorge, primos de Gino de Biasi Neto, tornaram-se patronos do Grêmio Novorizontino, conduzindo o clube de volta à Série A do Campeonato Paulista em 2015.
‘GADO PRECISA DE TERRAS BARATAS’
O sócio de De Biasi no Paraguai, o pecuarista Herbert Spencer Miranda Carranca, anunciou em 2005 sua saída de Araçatuba. Em entrevista ao Jornal da Região, afirmou: “A pecuária precisa de grandes extensões, por isso tem de ser desenvolvida em terras baratas”, referindo-se à procura por terras mais econômicas para a criação de gado no estado vizinho, Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai.
O distrito de Carmelo Peralta, onde as empresas de Carranca e De Biasi são acusadas de perseguição aos povos Ayoreo, está justamente na fronteira com o município sul-mato-grossense de Porto Murtinho.
Entre a gestão das fazendas e encontros com ursos no Alaska, Carranca também encontra tempo para ajudar os amigos. Em 2009, ele e sua esposa Claudia Jacinto Carranca – que também vem de uma longa linhagem de pecuaristas de Barretos – viajaram com a atriz global e expoente do antipetismo Regina Duarte para o Piauí. O casal se juntou à amiga famosa em busca de terras baratas para investir.
Durante a recepção organizada pelo então vice-governador Wilson Martins (PSB-PI), Eduardo Lippincott – marido de Regina e mais um pecuarista – afirmou que via oportunidades tentadoras no estado.
Junto ao Maranhão, Tocantins e Bahia, o Piauí integra o Matopiba, fronteira agrícola que tem sido alvo de uma investida por latifundiários, grileiros e especuladores, resultando na expulsão forçada de camponeses.