Tranquilo Favero é um “brasiguaio” por excelência. Natural de Santa Catarina, Favero já trabalhava como agricultor em Chopinzinho (PR) quando, em 1965, a convite de amigos, visitou o Paraguai pela primeira vez. O preço irrisório das terras imediatamente atraiu sua atenção. Ele aproveitou a viagem para comprar seus primeiros hectares. Conforme os negócios mostravam-se mais lucrativos, vendeu seus bens no Brasil e migrou definitivamente para o Paraguai.
O empresário constitui uma exceção em meio às 36 reportagens que compõem a série De Olho no Paraguai. Elas contam uma grande história transversal, inversa à trajetória desse empresário: não são os brasiguaios, descendentes dos brasileiros emigrados entre as décadas de 1950 e 1970, os donos dos principais latifúndios no país – e, como tais, a causa principal dos conflitos agrários no Paraguai.
A expansão econômica e territorial verde-amarela é liderada por grupos empresariais de capital brasileiro, cujos proprietários sequer vivem no Paraguai. Favero está fora dessa curva. Sem deixar de ser protagonista de conflitos.
MUITO ALÉM DA SOJA
Constantemente comparado a Blairo Maggi, com quem compartilha o apelido de “rei da soja” e o interesse econômico no Paraguai, Tranquilo Favero tornou-se o maior produtor individual de soja do país. Por meio de seu conglomerado empresarial, ele controla 129.817 hectares, segundo estimativas da Oxfam. Com isso ele lidera a lista dos maiores latifundiários brasileiros no Paraguai.
Com um porém: esse número, inferior aos 252 mil hectares controlados por Maggi no Mato Grosso, está longe de ser uma unanimidade: diversos veículos relatam que Favero teria de 400 mil a 1 milhão de hectares sob seu controle. Só que, assim como no Brasil, não há um controle fundiário que possa garantir, estritamente, até onde se estende o território de cada latifundiário.
Presente em 13 dos 17 departamentos paraguaios, o Grupo Favero teve origem na Agro Silo Santa Catalina S.A., uma empresa atuante na produção, armazenagem e comercialização de soja, além de milho, trigo, canola e girassol. Com 13 silos distribuídos na Região Oriental, ela foi listada pela Dirección Nacional de Aduanas entre os 30 maiores exportadores do Paraguai em 2017, com US$ 50,5 milhões. Outra empresa do grupo, a Agro Toro S.A., também aparece na lista de exportadores com US$ 16 milhões em vendas ao exterior.
Para escoar tanta soja, o Grupo Favero adquiriu um porto privado no Rio Paraná, o terminal Toro Cua, com capacidade de processamento de 60 mil toneladas de grãos. A logística – tema de uma das reportagens da série De Olho no Paraguai – é um desafio importante no país. Sem saída ao mar, ele depende de portos argentinos e, em menor escala, da saída via Paranaguá, onde até 2011 havia um terminal paraguaio administrado pela Cámara Paraguaya de Exportadores y Comercializadores de Cereales y Oleaginosas (Capeco), associação da qual Tranquilo Favero é membro.
Seguindo o exemplo do agronegócio brasileiro, o Grupo Favero verticalizou as operações. Em 2002, tornou-se representante oficial da New Holland, fabricante de máquinas agrícolas e de construção civil. Também passou a importar e processar agrotóxicos e fertilizantes, por meio da empresa Aktra. E, mais recentemente, entrou na comercialização de sementes com a subsidiária Semillas Verónica, batizada em homenagem à mulher de Favero, Verônica Comelli. Desde 2016, o Paraguai ocupa o 6º lugar entre os países com maior área plantada de sementes transgênicas; e, entre 2009 e 2013, quintuplicou as importações de agrotóxicos.
Prestes a completar 80 anos, Tranquilo pretende terminar seus dias no Paraguai, mas já declarou não ver necessidade de aprender o guarani, idioma falado por 95% da população: “Um amigo me disse que eu não precisaria aprender guarani se tivesse muitos deles no bolso”.
“FAVERO NUNCA MAIS”
O epicentro da expansão econômica e territorial de Tranquilo Favero no Paraguai é o distrito de Ñacunday, Alto Paraná. Ali o grupo controla 52.942 hectares, que equivalem a 62% das terras disponíveis em Ñacunday, de acordo com a Dirección General de los Registros Públicos. A 95 quilômetros de Foz do Iguaçu, o distrito está em uma das regiões mais valorizadas do país, com valores que chegam a US$ 10 mil por hectare.
Mas essa riqueza não chega nas mãos dos cidadãos paraguaios: 55% dos títulos de terras no departamento de Alto Paraná estão em mãos de proprietários brasileiros. É o segundo estado nesse quesito, perdendo apenas para Canindeyú, onde os brasileiros dominam 60% das terras.
O clima em Ñacunday já era tenso quando, em abril de 2011, 400 famílias vinculadas à Liga Nacional de Carperos – um dos principais movimentos sem-terra do Paraguai – ocuparam 3 mil hectares da fazenda Espigón, vinculada à empresa Agro Toro. Como justificativa, o movimento camponês apontava os dados do levantamento realizado pelo Instituto de Desarrollo Rural y de la Tierra (Indert) demonstrando que parte das terras de Tranquilo Favero haviam sido griladas durante o regime do ditador Alfredo Stroessner (1954-1988), quando um total de 6,7 milhões de hectares foi concedido de forma irregular a apoiadores e amigos do general.
O conflito rapidamente cresceu. Conforme mais famílias juntavam-se à ocupação Favero Cué – em guarani, “Favero Nunca Mais” -, proprietários brasileiros e colonos brasiguaios apelavam por uma intervenção do embaixador do Brasil em Assunção. A tensão crescente em Ñacunday motivou uma reunião a portas fechadas entre os presidentes Dilma Rousseff e Fernando Lugo, durante um encontro do Mercosul. A colheita da Agro Toro passou a ser escoltada por policiais armados.
Em fevereiro de 2012, no auge do conflito, Favero concedeu entrevista à Folha declarando-se saudoso dos tempos de Stroessner: “Naquela época você podia dormir com a janela aberta e ninguém te roubava. Só estamos piorando desde então”. Disse ainda que seria inútil lidar com camponeses através da diplomacia: “Têm que ser tratados como mulher de malandro, que só obedece na base do pau”.
As declarações motivaram críticas diretas do chefe de gabinete do presidente Fernando Lugo, a quem Favero havia apoiado nas eleições de 2008. O sojeiro passou a atacar Lugo abertamente, apoiando o movimento que viria a derrubar o presidente em junho de 2012 – um dos temas do eixo Política, o próximo desta série de reportagens. No dossiê do impeachment foi mencionado como justificativa o mau desempenho de Lugo na resolução dos conflitos fundiários em Ñacunday e, mais intensamente, no massacre de Curuguaty.
Três anos depois, em 2015, o Senado paraguaio aprovou a expropriação de 11.681 hectares do Grupo Favero para reforma agrária em Ñacunday. No entanto, a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta após intenso lobby de associações setoriais. Com a maioria das lideranças respondendo a processos judiciais, o movimento camponês foi desarticulado e Favero manteve suas terras no Alto Paraná.
DO GADO ÀS FRAUDES
Apesar de ter se tornado conhecido como produtor de soja, Tranquilo Favero investe também na pecuária: das nove empresas que compõem o Grupo Favero, três são dedicadas à criação de gado bovino. No Chaco, a Ganadera Forestal Santa Catalina S.A. possui 40 mil cabeças de gado espalhadas em 60 mil hectares, entre os departamentos de Boquerón e Presidente Hayes. Também no Chaco estão as terras de uma de suas filhas, Odila Luzia Favero.
Junto ao marido Nezildo Marini e os filhos Lucas e Cibele, ela é dona da Toro Blanco S.A., que detém 37 mil hectares em Boquerón. Essas terras pertenciam originalmente ao Indert, destinadas à reforma agrária. Por estarem em região de fronteira, as terras também não poderiam ser vendidas a estrangeiros, de acordo com a Lei de Segurança Fronteiriça.
Embora a Toro Blanco S.A. não faça parte diretamente do Grupo Favero, a família Marini segue orbitando o patriarca. Nezildo é co-proprietário das terras de Tranquilo Favero em Ñacunday. Um dos filhos dele com Odila, Lucas Marini Favero, foi escolhido pelo avô como sucessor na presidência da Agro Silo Santa Catalina.
Antes dele, a cadeira havia sido ocupado por Rene Leônidas Zittel, marido da filha mais velha de Tranquilo, Helena Paulina Favero. Seu nome esteve envolvido em um escândalo de falsificação de documentos utilizados na cobrança de hipotecas que não existiam. A empresa falsificou as assinaturas de 28 colonos em papéis referentes à cobrança de dívidas junto à Agro Silo Santa Catalina.
Os documentos eram usados para tomar a safra dos colonos a pretexto de pagamento da hipoteca falsa. Em janeiro de 2017, funcionários da empresa Sienna S.A., que arrendara a terra de um dos colonos, tentaram impedir a ordem judicial para a retirada dos grãos e foram violentamente afastados pela polícia paraguaia. A fraude totalizou US$ 170 milhões e se tornou notória pela influência direta do senador Óscar González Daher, que anulou uma medida cautelar contra o Grupo Favero. Daher é casado com a escrivã acusada de forjar as assinaturas para Rene Zittel e a Agro Silo Santa Catalina.
ROGÉRIO CENI, SÓCIO DOS FAVERO
Naturalizado paraguaio há 29 anos, Tranquilo Favero deixou 12 irmãos no Brasil. Grande parte da família ficou em Chopinzinho, onde se manteve no ramo agropecuário. Um dos ramos da família controla o Grupo Sojamil, administrado por José Favero, que atua no armazenamento, transporte, distribuição e exportação de grãos e sementes no sudoeste paranaense. Os Favero do Brasil têm sociedade com outra família influente em Chopinzinho, cujo sobrenome se tornou internacionalmente conhecido por causa do futebol: os Ceni.
Entre os sócios da Sojamil Comércio de Cereais Ltda. estão Clemair, Celivaldo e Reovaldo, parentes do eterno capitão do São Paulo Futebol Clube, Rogério Ceni. O pai do goleiro pentacampeão, Eurydes Ceni, chegou em 1958 em Chopinzinho, onde se casou e teve quatro filhos. Agricultor de berço, Eurydes mudou-se com a família para Sinop, no Mato Grosso, onde cria gado e planta soja. Foi em Sinop que Rogério Ceni iniciou a carreira futebolística, sendo descoberto pelo clube paulista em 1990.
O pai do goleiro foi citado em 2008 no relatório Conexões Sustentáveis São Paulo-Amazônia, da Repórter Brasil, pelo desmatamento de 230 hectares – sem autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) – para a implementação de lavoura de soja na fazenda Dona Dozonila. A produção foi vendida para a Bunge para a produção de óleo vegetal. A fazenda é hoje administrada pelo irmão de Rogério, Rudimar.
Agora como treinador, Ceni usa a fazenda da família como refúgio de férias e demonstra intimidade com a pecuária. Após sua aposentadoria, a agência de turismo oficial do São Paulo promoveu um pacote de viagem onde os torcedores podiam passar um fim de semana inteiro com o ídolo em sua cidade natal. O roteiro incluía uma visita à fazenda, guiada por Rogério. Preço do pacote? R$ 6 mil.
Em 1986, o então prefeito de Chopinzinho, Albino Scolaro, comprou dois lotes de Tranquilo Favero para a construção de um centro comunitário. O Loteamento Vista Alegre foi construído em cima de uma chácara que pertencia ao brasiguaio. Ligado à família Ceni (é sócio de Álvaro Denis Ceni Scolaro, atual prefeito do município), Scolaro também é um dos sócios da Sojamil Comércio de Cereais.