Cororó: cenário de assassinato atribuído a grupo guerrilheiro. (Foto: Reprodução)

Parceira da Shell na Raízen, a maior empresa sucroenergética do mundo, a paulista Cosan tem entre os sócios a família Rezende Barbosa, desde a incorporação da Usina Nova América. Os tentáculos sul-mato-grossenses dessa família – com direito a fazenda em terras indígenas – estendem-se para a Bolívia e, principalmente, o Paraguai, onde os 50 mil hectares de terras do grupo já atraíram a atenção do Exército do Povo Paraguaio (EPP).

Em agosto de 2015, a Estância Lagunita – ou Cororó – foi o cenário do sequestro e morte de um dos funcionários da fazenda, o administrador Silvio Deip Barboza. Dois anos antes, no mesmo local, no distrito de Tacuatí, departamento de San Pedro, tinham sido assassinados um policial e quatro seguranças. O grupo guerrilheiro EPP assumiu os ataques. Um comunicado atribuído ao movimento dizia que jagunços ligados à empresa já tinham matado mais de 20 camponeses.

O alvo principal dos revolucionários era Renato Eugênio de Rezende Barbosa, nome atuante da família no Paraguai e no Mato Grosso do Sul. Os investimentos do grupo no Brasil incluem a cana de açúcar, a citricultura e a pecuária. Um dia antes dos ataques de 2013 o irmão Roberto de Rezende Barbosa – responsável pelo setor sucroenergético – anunciara um aporte de US$ 150 milhões em uma usina de álcool no Paraguai. Mas o grupo desistiu. A atividade principal por lá continuou sendo a pecuária, setor de Renato, com 60 mil cabeças de gado.

Retomada Kunumy Verá Poty, após o Massacre de Caarapó. (Foto: Pablo Albarenga/Agência Pública)

No Brasil, a empresa tinha, no início deste século, 50 mil cabeças de gado, distribuídos – junto com as culturas agrícolas – em 110 mil hectares. Somente a Fazenda Campanário, em Laguna Caarapã (MS), principal remanescente da Companhia Matte Larangeira no Brasil, com espaço para pecuária, soja, milho, possui 37 mil hectares.

SÓCIO PEDIU RETIRADA DE FAMÍLIAS

Um desses tentáculos sul-mato-grossenses da Fazenda Campanário, na fronteira com o município de Caarapó, coincide com a Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I. O relatório de identificação e delimitação da TI, publicado no dia 3 de junho de 2016, traz uma lista com 87 proprietários incidentes. Pois bem: o 35º nome é o de Renato Eugênio de Rezende Barbosa. “E outros”. O nome do imóvel assinalado não deixa dúvidas: Fazenda Campanário.

Foi em uma das retomadas nessa região que, em 2017, houve o conflito que ficou conhecido como Massacre de Caarapó. Ali foi assassinado o professor Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza. Outros cinco Guarani Kaiowá foram baleados; mais seis, feridos de outras formas. De Olho nos Ruralistas esteve no local, neste mês de agosto, e contará – na série De Olho no Mato Grosso do Sul – histórias atualizadas sobre fazendeiros e familiares.

Em 1972, Roberto de Rezende Barbosa – então diretor da Companhia Agrícola e Pastoril Campanário – enviou à Fundação Nacional do Índio (Funai) um pedido para que a instituição retirasse “cerca de 76 índios Kaiwá, que ali vivem”. Ele se referia aos Guarani Kaiowá, até hoje as vítimas de um dos maiores conflitos fundiários envolvendo povos indígenas na América do Sul.

Naquele mesmo ano, em plena ditadura, a Funai enviou – conforme documento divulgado pelo Instituto Socioambiental, o ISA – um antropólogo que constatou: 1) um indígena conhecido como Capitão Valério nascera em 1905, naquele local; 2) em 1927, os Kaiowá já viviam no lugar onde foi construída a Fazenda Campanário; 3) quando a atual proprietária (os Rezende Barbosa) adquiriu a fazenda, em 1971, “sabia da existência nela de aldeias indígenas”.

Confira aqui o documento, com destaque feito pelo observatório, em vermelho:

Em 1973, Roberto Rezende Barbosa pediu expulsão de famílias que chegaram antes da empresa. (Imagem: Funai/ISA)

O relatório circunstanciado da Funai sobre a TI Dourados-Amambaipeguá informa que a remoção dos indígenas da região ocorreu, progressivamente, após os anos 1970 e 1980, “permanecendo algumas famílias no local até o início dos anos 1990, quando foram compelidos a deixar definitivamente o local”.

Esse trecho do relatório se refere, especificamente, da comunidade Laguna Joha, na margem direita do Rio Amambaí, “próxima da antiga sede da Companhia Matte Laranjeira”. A aldeia Urukuty, na margem esquerda, a 20 quilômetros da sede da fazenda. Eram essas famílias que os atuais sócios da Cosan queriam expulsar.

CANA EM TERRAS INDÍGENAS

Os Rezende Barbosa se projetaram no Mato Grosso do Sul a partir desses territórios e do grupo Nova América, que antigamente comercializava a marca de açúcar União. Em 2009, a empresa foi comprada pela Cosan, pouco antes da criação, junto com a anglo-holandesa Shell, da multinacional Raízen.

BNDES apoiou projetos em terras indígenas. (Foto: Maria Luisa Mendonça/Rede Social de Justiça)

Exatamente a unidade da Nova América em Caarapó, como resume um relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, “foi denunciada por plantar cana em terras indígenas já homologadas pela União, utilizando financiamento do BNDES”, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Notem, na imagem ao lado, que a área plantada era próxima de 10 mil hectares. A organização mencionava notícia  de 2011 publicada pela Repórter Brasil: “BNDES financia usinas que compram cana de terras indígenas”.

O mesmo trabalho da Rede Social de Justiça informava, em 2012, que a empresa arrendava uma fazenda incidente na Terra Indígena Guyraroca, também em Caarapó, a Santa Claudina, pertencente ao deputado estadual Zé Teixeira (DEM-MS).

E mais, conforme resumo do ISA: “A empresa igualmente explorou, sem autorização da comunidade, cascalho pertencente à terra indígena Taquara para utilização nas estradas por onde trafegam os caminhões da usina”. A Taquara fica no município de Juti, vizinho de Caarapó, outro cenário de conflitos indígenas – como o assassinato de Marcos Veron, em 2003.

A AVENIDA BRASIL-PARAGUAI

A conexão com os Kaiowá se estende para o Paraguai, onde a etnia se assume como Pãi Tavyterã. Em Jeguahaty, no departamento de Concepción, relatou há dez anos o jornal ABC Color, os indígenas precisavam entrar na comunidade pelo pasto da Estância Agüerito, contígua, uma fazenda de 20 mil hectares da Matte Larangeira Mendes del Paraguay – também rodeada pelos guerrilheiros do EPP.

A sede da Lagunita (ou Cororó), aquela fazenda onde foi assassinado o administrador brasileiro, fica em Capitán Bado, no departamento de Amambay. É lá que os sócios da empresa fazem as assembleias. Atravessando a rua se está em Coronel Sapucaia, no Mato Grosso do Sul. Fica nesse estado – e em uma região também disputada pelo tráfico de drogas – o maior trânsito de latifundiários brasileiros para o país vizinho.

Região de conflito com EPP – e de fácil trânsito para o Brasil. (Imagem: Reprodução)

No Brasil, a sede administrativa da Estância Lagunita tem seu endereço declarado no Distrito de Ypejhú, no departamento de Canindeyú, em conurbação com Paranhos (MS). O email de contato, nos registros oficiais da empresa, é o do administrador da Nova América Agrícola Caarapó Ltda (empresa sócia da Cosan) – do lado brasileiro da fronteira, portanto.

A Campanário Agropecuária e a Campanário Administração e Participações, ambas do clã Rezende Barbosa, têm como endereço outra Fazenda Campanário, na rodovia entre Caarapó e Amambaí. Essa é aquela que incide na TI Dourados Amambaipegua I. E há ainda uma terceira Fazenda Campanário, em Ponta Porã. Motivo para os nomes coincidentes: elas já foram uma só.

E já pertenceram à Companhia Matte Larangeira. As terras da família Rezende Barbosa no Brasil e no Paraguai estão diretamente relacionadas à história dessa empresa, essencial para se compreender a expansão agropecuária nos dois países e na Argentina. Confira aqui: “No século 19, Matte Laranjeira teve 2 milhões de hectares no Paraguai”. Detalharemos essa história mais à frente.

GADO NO CHACO E CANA PARA ODEBRECHT

Não é de hoje que os territórios estão em disputa. Em 2008, a sede da Lagunita/Cororó já havia sido ocupada, durante alguns meses, por carperos, um movimento paraguaio de camponeses sem conexão com os guerrilheiros do EPP.

Empresa do grupo incorpora nome indígena, “terenas”. (Foto: Divulgação)

As terras em território paraguaio se multiplicam. Um dos sócios de Denise Maria Terra de Rezende Barbosa, o pecuarista Ruy Moraes Terra Filho, informou em 2014 possuir 21.898 hectares em Puerto Casado, no departamento de Alto Paraguai – perto da fronteira com o Mato Grosso do Sul.

Outra atividade do grupo no estado se dá a partir da Agroterenas em Deodápolis, mais um município próximo de Dourados. A empresa produtora de cana e laranja também está presente em Paraguaçu Paulista e Santa Cruz do Rio Pardo (SP). Somente com cana foram cultivados 15 mil hectares, em 2016.

A Agroterenas é a principal fornecedora para duas das três usinas da Odebrecht Agro no estado. O braço sucroalcooleiro da empreiteira, renomeado para Atvos após os escândalos da Operação Lava Jato, compra cana dos Rezende Barbosa para as usinas Eldorado, em Rio Brilhante, e Santa Luzia, em Nova Alvorada do Sul.

O site da empresa informa que a Agroterenas Terras administra e explora 42.520 mil alqueires – ou seja, 102.898 hectares de terras – em parceria com as demais empresas agrícolas do grupo.

No Brasil a família também possui terras em outros estados, como a Fazenda Berrante, em Assis (SP), especializada em cavalos Quarto de Milha. A Berrante II foi incorporada à Campanário Participações. Como veremos, a Campanário também foi muito atuante no Paraná.

NO INÍCIO, A MATTE LARANGEIRA

A empresa Mate Larangeira Mendes del Paraguay pertenceu à família do engenheiro Carlos María Videla, o Charles, argentino falecido em 2013. É uma remanescente da Companhia Matte Larangeira. Em 2011, a empresa ainda possuía 40 mil hectares no departamento de Concepción, ao norte de Assunção.

Luis Mendes Prates comandou a Matte Larangeira. (Foto: Reprodução)

Outra ponta da Companhia Matte Larangeira ficou com a família Mendes Prates, herdeira do banqueiro Francisco Mendes Gonçalves, um dos fundadores da empresa, no século 19. Em Ponta Porã, na fronteira do Mato Grosso Sul com o Paraguai (lembremos que boa parte do sul do estado pertencia ao município de Ponta Porã), a Fazenda Santa Virgínia pertencia, até 2016. ao neto de Gonçalves, Luis Mendes Prates – ele morreu naquele ano.

Hoje a empresa é presidida por Raul Mendes Prates. Quatro empresas funcionam no endereço do imóvel: a Companhia Mate Larangeira, a Mendes Gonçalves e duas chamadas Larangeira Mendes S.A. O grupo também tem um armazém no município de Naviraí, no sul do estado.

A família Mendes Prates conecta-se com o lado argentino da Matte Larangeira. Quem sucedeu Carlos María Videla (filho de uma Mendes Gonçalves) na presidência da empresa pecuarista Los Talas, em 2014, foi Silvia Mendes Prates – filha de Luis Mendes Prates. Silvia estudou em São Paulo. O vice era justamente Luis. O diretor, seu filho Raul. A parte argentina – que comandou o grupo por muitos anos – foi vendida para a Química Estella e pertence hoje à megacorporação Molinos Río de La Plata.

EM PONTA PORÃ, INFLUÊNCIA POLÍTICA

Um dos Mendes Gonçalves, Fernando Jorge, foi deputado federal pelo Mato Grosso – antes da criação do Mato Grosso do Sul – entre 1955 e 1963, pelo PSD. Ele foi vice-presidente da companhia, alternando-se entre Guaíra (PR) e a Fazenda Campanário. Em 1961, aparteou um deputado, após a renúncia de Jânio Quadros, propondo a adoção do parlamentarismo para que o Brasil não fosse tomado pela “aventura”: a posse de João Goulart.

Mendes Gonçalves era contra as reformas de base de Jango. Em defesa do direito de propriedade e, conforme biografia feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), contra a reforma agrária “coletivista”. Era a favor do capital estrangeiro privado. Após 1963 foi cuidar de fazenda e de cooperativa em Alegrete (RS).

Vargas confiscou bens da Matte Larangeira, mas deixou terras. (Foto: Reprodução)

Outros membros da família estiveram na política. Orlando Mendes Gonçalves, falecido em agosto de 2017, foi prefeito entre 1979 e 1980, durante a ditadura. Pai do ex-deputado Fernando Jorge, Heitor Mendes Gonçalves também foi prefeito de Ponta Porã. É o mesmo nome de um dos sócios de Raul Prates no que sobrou da Matte Larangeira.

Heitor protestou com veemência, durante o governo de Getúlio Vargas, que ele definia como um “caudilho gaúcho”, contra decisão de interromper arrendamentos e concessões feitas à empresa. Vargas não ficou comovido. Em 1944, assinou decreto de criação de um distrito federal em Ponta Porã, e confiscou bens da empresa.

Sobraram para a família a Fazenda Cruz de Malta, em Guaíra, uma quarta parte da Fazenda Margarida, em Bela Vista (MS), e a Santa Virgínia. Nada menos que 50 mil hectares da fazenda em Ponta Porã foram vendidos para o grupo Itamaraty, do empresário sojeiro Olacyr de Moraes.

‘UM MICRO MERCOSUL’

Francisco Mendes Gonçalves fundou a Matte Larangeira junto com Francisco Murtinho – que dá nome ao município de Porto Murtinho – e Thomaz Larangeira, em 1883. Uma das descendentes dos Mendes Gonçalves, Elza Dória Mendes Gonçalves, herdou a Fazenda Margarida.

Ela contou em entrevista que, no processo de expansão da Matte Larangeira, seu tio-avô Francisco foi para Buenos Aires; seu avô Antônio (pai de Heitor) foi para Corumbá, no Pantanal; e outro tio-avô, Ricardo, foi para Assunção. “Formaram um micro Mercosul”, define.

Prima de Luís Prates, sobrinha de Heitor, Elza informou em livro que cresceu na Fazenda Campanário (visitada por Vargas também em 1944), onde viviam 1.500 pessoas. A fazenda foi vendida pela família em 1953 – passando pelo príncipe polonês e chegando aos Rezende Barbosa, da Usina Nova América, hoje da Cosan. A mesma família, como vimos, adquiriu as terras paraguaias.

Do ponto de vista empresarial, a Cosan também avança pela América do Sul. O grupo informou em março – de acordo com notícia do Valor – que a Cosan Lubrificantes e Especialidades firmou acordo com a estadunidense Exxon Mobil Lubrificants para “produção, importação, distribuição e comercialização exclusiva” de produtos da marca Mobil. O acordo vale por vinte anos, para Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai – onde ela já distribui os lubrificantes desde 2011.

A Raízen (joint venture entre Cosan e Shell), por sua vez, empresa com um faturamento de R$ 86 bilhões, informa possuir 860 mil hectares de área cultivada. É o equivalente ao tamanho de Porto Rico.

A Raízen Paraguaçu exporta cana para a Inpasa, objeto de outra reportagem desta série: “Gigante do etanol que investe em MT queimou casas e destruiu escola indígena no Paraguai“.