Histórias de conflitos permeiam a série De Olho no Paraguai. Nos cinco eixos que precedem o desfecho desta série especial – iniciamos agora o último bloco de seis reportagens – a violência se manifesta sob diversas formas. Do ataque a povos indígenas isolados ao envenenamento por agrotóxicos, do desmatamento no Chaco ao tráfico de drogas, da grilagem à repressão contra movimentos de luta pela terra.
Em Relatos de uma Guerra, os conflitos não são apenas casos pontuais, mas um resultado direto da expansão agropecuária brasileira sobre o Paraguai. Com a conivência e, muitas vezes, auxílio do Estado paraguaio. Mais que um avanço territorial: uma invasão. Com vítimas. Um lugar em especial ilustra essa tese: o distrito de Curuguaty, em Canindeyú.
A apenas 85 quilômetros da fronteira com Paranhos, no Mato Grosso do Sul, essa pequena cidade de 65 mil habitantes ganhou fama internacional como palco do maior massacre da história recente do Paraguai. Em 15 de junho de 2012, 324 policiais do Grupo Especial de Operações (GEO), com o apoio de helicópteros, invadiram e abriram fogo contra a ocupação Marina Kue.
No confronto que se seguiu, 11 camponeses e 6 policiais foram mortos. Vinte pessoas ficaram feridas. Outros 11 camponeses foram presos. Seis anos depois, no dia 28 de julho, foram absolvidos das acusações pela Corte Suprema.
O massacre foi o estopim final da queda do presidente Fernando Lugo, da Frente Guasú, em 2012, que alterou o balanço de poder no país. Após o mandato-tampão de Federico Franco, Horacio Cartes recolocou o Partido Colorado no poder após um inédito intervalo de cinco anos – que tinha se seguido a seis décadas de governo ininterrupto.
Em seu governo, Cartes recuou nas políticas de reforma agrária, cedeu ao lobby do agronegócio e, sob protestos, empossou o promotor do caso Curuguaty, Jalil Rachid, como vice-ministro de Segurança. No palco do massacre, os 1.748 hectares ocupados pelos camponeses de Marina Kue voltaram às mãos da empresa Campos Morombí, pertencente ao conglomerado de Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado.
No total, o grupo possuía cerca de 75 mil hectares na região. Após o falecimento de Riquelme, poucos meses após o massacre, e apesar das evidências de que a Campos Morombí havia se apropriado indevidamente da área, o governo de Cartes aceitou a oferta da empresa, que “doou” as terras – obtidas de forma irregular – de volta ao governo paraguaio.
DE CURUGUATY À AMAZÔNIA
O departamento de Canindeyú, onde está o distrito de Curuguaty, é aquele com maior quantidade de títulos de terra pertencentes a brasileiros: 60,1% do total de registros. Ao todo, segundo levantamento do ministério da Defesa, 1.744 brasileiros são proprietários de 249 mil hectares, contra 200 mil em mãos de cidadãos paraguaios. Dessa cifra, 5.953 hectares correspondem a uma só família: Maria Aparecida Pelissari de Souza e seus filhos Maximilian e Anderson.
Eles são sócios da Caramuru Alimentos, um dos maiores grupos do agronegócio brasileiro. Com investimentos massivos em logística. A Caramuru possui 73 armazéns distribuídos entre Paraná, Goiás, Mato Grosso e São Paulo; cinco plantas industriais para processamento de soja, milho e biodiesel; e dez terminais logísticos em portos marítimos, hidroviários e hidroferroviários, sendo a maior usuária da hidrovia Tietê-Paraná.
Dono da marca Sinhá (óleo, fubá, farofa, sopão, coco ralado, entre outros produtos) e de outras onze no segmento industrial, o grupo vem expandindo sua atuação pelo país. Em 2017, iniciou a exportação de proteína concentrada de soja pelo Norte, via Itaituba (PA) e Santana (AP).
No mesmo ano, o presidente da Caramuru, Alberto Borges de Souza, filho mais novo do fundador Múcio de Souza Rezende, tornou-se réu na Operação Zaqueus, que desmantelou esquema de lavagem de dinheiro e fraude processual no pagamento de autuações da Secretaria de Estado e Fazenda do Mato Grosso (Sefaz-MT). Por meio do pagamento de propina a servidores públicos, segundo o Ministério Público, a Caramuru conseguiu reduzir o valor de suas autuações fiscais de R$ 65,9 milhões para R$ 315 mil. Um funcionário da empresa, Walter de Souza Júnior, também foi indiciado.
A pujança do Grupo Caramuru no setor logístico não reduziu o apetite da família para novas terras. O irmão de Alberto e vice-presidente da empresa, César Borges de Souza, comprou seus primeiros hectares nos anos 1970. O lugar escolhido foi Nova Canaã do Norte (MT), na Amazônia mato-grossense, onde a pecuária ganhava espaço. Muito espaço: a fazenda Calixbento tem 12 mil hectares. O nome é uma homenagem à canção Calix Bento, de Milton Nascimento: “Ó Deus salve o oratório, ó Deus salve o oratório, onde Deus fez a morada…”
CONEXÃO COM BLAIRO MAGGI
César Souza nunca esteve tão empolgado. Desde que o filho Eduardo se tornou sócio da Calixbento, os negócios deslancharam. Na safra 2012/2013, imediatamente após a família adotar a integração lavoura-pecuária, a fazenda já possuía 1.500 hectares convertidos para o plantio de soja. César explicou ao Brasil Econômico o desempenho, em 2012: “Meu filho virou sócio na fazenda e está empolgado com o negócio, afinal também vai ganhar dinheiro. E é bom porque ele bebe na fonte da sabedoria, já que é genro do Blairo”.
Eduardo Borges de Souza é casado com Ticiane Maggi, uma das filhas do ministro da Agricultura. Dono da Amaggi, uma das maiores produtoras e comercializadoras de soja do mundo, Blairo Maggi possui tentáculos na logística que se espalham em direção ao Paraguai. Desde que desembarcou no mercado paraguaio, em 2014, a Amaggi teve um crescimento vertiginoso. Em apenas quatro anos, tornou-se a 10ª maior comercializadora de soja do país, abocanhando uma fatia de 3% das exportações no primeiro semestre de 2018, segundo a Capeco.
No ano passado, a Amaggi S.R.L. exportou US$ 59,2 milhões através de sua subsidiária em Ciudad del Este. E com potencial para crescer: o Paraguai é hoje o quarto maior exportador e sexto maior produtor de soja do mundo.
TERRAS DE QUEM?
As terras de Maria Pelissari de Souza no Paraguai estão divididas em duas fazendas, de acordo com os relatórios de impacto ambiental entregues à Secretaria do Ambiente (Seam): a Estância JP, com 3.334,7 hectares, e Estância JS, com 2.618,7 hectares. Ambas dedicadas à pecuária e plantio de soja. Mas alguns números não batem. Em 2004, oito anos antes do massacre, camponeses vinculados à Mesa Coordinadora Nacional de Organizaciones Campesinas (MCNOC) ocuparam uma área de 400 hectares em Curuguaty, correspondente ao lote nº 116.
A MCNOC alegava que as terras pertenciam à empresa agropecuária de Blas Riquelme. No entanto, o promotor Leonardo Cáceres Alvarenga autorizou um mandado judicial para restaurar a posse do lote 116, não para a Campos Morombí, mas sim para Maria Pelissari de Souza. Detalhe: o lote que pertencia à família londrinense era o 126, que não estava sendo ocupado pelos camponeses.
Frente à chegada de um contingente de cem policiais, o grupo recuou e desocupou pacificamente a área. Mas ficou a dúvida sobre quem seria o real dono do lote 116. A outra estância tampouco está livre de questionamentos. Em 2016, um relatório de impacto ambiental relativo aos mesmos lotes titulados para a Estância JS menciona outro nome para a propriedade: Estância Vy’aha. Segundo esse documento, a área é um condomínio entre Sebastião Nilson Mendes e a família Souza.
Mendes foi personagem de reportagem do eixo Empresas: “Império agropecuário do Itaú Unibanco tem face explícita no Paraguai”. Junto com Ali Mohamed Osman, dono da Cabaña Issos Greenfield, ele foi indiciado pela intoxicação da comunidade indígena Campo Agua’ê, da etnia Avá-Guarani, por causa da pulverização de agrotóxicos.
Segundo a denúncia apresentada em 2009 pelo líder comunitário Benito Oliveira, as famílias de Campo Agua’ê apresentavam sintomas de diarreia, vômitos, problemas respiratórios, dores de cabeça e erupções cutâneas, bem como a inutilização de seus cultivos de subsistência e morte de animais. Em 2014, a comunidade voltou a denunciar os pecuaristas pela morte de dois recém-nascidos, mas o processo foi engavetado.
Citado pela imprensa paraguaia como sócio de Osman, Sebastião Nilson Mendes – conforme uma publicação da empresa de transportes Carga Granel S.A. – aparece junto a Maximilian Pelissari de Souza representando a Estância JS durante a entrega de um caminhão graneleiro. Do lado brasileiro, ele também possui terras. Em Paranhos (MS) próximo à fronteira com Canindeyú, ficam as fazendas Ponte de Tábua e Etn Ipoy. Em 2009, ambas as propriedades foram incluídas na Zona de Alta Vigilância para febre aftosa no Mato Grosso do Sul.
CONFLITOS, VACINAS E NARCOTRÁFICO
No período entre a ocupação da Estância JP e o massacre em Marina Kue, Curuguaty presenciou outro conflito envolvendo um proprietário brasileiro: Joaquim Fernandes Martins.
Em 2009, as fazendas do pecuarista foram ocupadas por integrantes da MCNOC. O grupo exigia do Instituto Nacional de Desarrollo Rural y de la Tierra (Indert) a expropriação de 6.634 dos 11.675 hectares pertencentes ao brasileiro. Segundo lideranças camponesas, essa parcela de terra constava entre os 989 mil hectares cedidos de forma irregular pelo Instituto de Bienestar Rural (IBR) entre 1989 e 2003. Mencionavam também o fato de que, em 2004, o camponês Esteban Hermosilla foi assassinado naquela mesma propriedade.
Paranaense de Umuarama, Joaquim Fernandes Martins é dono da rede de supermercados Planalto, a sétima maior do estado. Ele também é sócio na Pilar Agropecuaria S/S, por meio da qual administra a Fazenda Canaã, em Iguatemi (MS). Enquanto no Paraná ele recebe homenagens da Federação do Comércio, no Paraguai ele é investigado.
Em 2009, mesmo ano da ocupação pelos camponeses, a Estância San Joaquin foi embargada por suspeita de fraude na vacinação de gado contra a febre aftosa. O Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Animal (Senacsa) cadastrou 15.365 bovinos imunizados, enquanto a fazenda tinha registro de 18.366 cabeças. Sobravam, portanto, 3.001 animais sem confirmação de vacina durante o auge da crise sanitária, que motivou embargos temporários em diversos mercados consumidores.
Em 2017, o Departamento Antinarcóticos encontrou e destruiu, pela segunda vez, uma plantação de maconha dentro da Estância Cancha de Gallo, também pertencente a Joaquim Fernandes. A primeira queima havia ocorrido em 2014. O promotor do caso, Jalil Rachid, é o mesmo que denunciou os camponeses no massacre de Curuguaty.